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Texto sobre violência contra crianças e adolescentes.
Tipologia: Notas de estudo
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REVIS√O / REVIEW
Maria CecÌlia de Souza Minayo 1
(^1) Fundação Oswaldo Cruz Presidência, Av. Brasil, 4365, Pavilhão Mourisco, 1º. andar, Manguinhos, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, CEP 21.045.
Abstract History shows that from primitive times until the present age violence against children has been a social and cultural phenomenon of great rele- vance. The forms of violence, the cruelest and the most subtle, differ within societies. In Brazil, we dis- tinguish a structural violence which is strongest among children who work and those who live on the streets or who are confined in closed institutions, and a social violence which is more vividly expressed in domestic violence; a delinquent violence where the children are both victims and actors. The juvenile and children's statute represents an important instrument through which society and the State, recognizing the characteristics of both entities, can try to dominate the forms of violence affecting their growth and de- velopment and thus their social development. Key words Violence, Battered child syndrome, Adolescence, Child health (Public health), Public health
Resumo A história mostra que, desde os tempos primitivos até o momento presente, a violência contra a criança se apresenta como um fenômeno social e cultural de grande relevância. Em diferentes so- ciedades as formas, as mais cruéis e as mais sutis, se diferenciam. No Brasil podemos distinguir uma vio- lência estrutural, cujas expressões mais fortes são o trabalho infantil, a existência de crianças vivendo nas ruas e em instituições fechadas; uma violência so- cial, cujas mais vivas expressões se configuram na vi- olência doméstica; uma violência delinquencial, na qual as crianças são vítimas e atores. O Estatuto da Criança e do Adolescente oferece importante instru- mento para que a sociedade e o estado possam, re- conhecendo o protagonismo desses sujeitos, buscar superar as formas de violência que prejudicam o seu crescimento e desenvolvimento e, portanto, o desen- volvimento social. Palavras-chave Violência, Criança maltratada, Adolescência, Saúde infantil (Saúde pública), Saúde Pública
Minayo MCS
Para iniciarmos uma reflexão sobre o tema, tomare- mos aqui a definição construída por várias autoras brasileiras como Guerra, 2 Assis, 3 Deslandes, 4 segun- do as quais, a violência contra a criança e o adoles- cente é todo ato ou omissão cometidos por pais, pa- rentes, outras pessoas e instituições, capazes de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima. Implica, de um lado, numa transgressão no poder/de- ver de proteção do adulto e da sociedade em geral; e de outro, numa coisificação da infância. Isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condições especiais de crescimento e desenvolvi- mento. A capacidade de gerar uma definição como esta é algo próprio à sociedade moderna, onde crianças e adolescentes se tornam sujeitos de direito, e portan- to, reconhecidos como portadores de cidadania. Mas para a consciência moral da humanidade chegar ao ponto dessa afirmação, foi necessário que o movi- mento social pela cidadania, consagrado na Revo- lução Francesa, em 1789, contaminasse, pelas rei- vindicações ativas dos sujeitos coletivos, grupos so- ciais específicos com a grande corrente social do feminismo e por último, o movimento que teve como objetivo a cidadania da infância e da ado- lescência. A violência contra esses grupos etários, con- forme mostra Assis, 3 acompanha a trajetória humana desde os acontecimentos mais primitivos de que se têm registro. E são também inumeráveis as modali- dades pelas quais se expressa, dentro das diferentes culturas. Por exemplo, a eliminação de crianças e adolescentes é dos temas mais citados na história, abrangendo o infanticídio (crianças pequenas mortas pelos pais) e os homicídios. Conforme assinala Veyne, 5 a prática do infanticídio era aceita pelas so- ciedades antigas, sendo facultado aos pais, acolher ou renegar o filho recém-nascido. A própria Bíblia apresenta passagens em que, nos momentos de es- cassez de alimentação, o povo hebreu comia as cri- anças mais novas: "Dá cá o teu filho para que hoje o comamos e amanhã comeremos o meu filho. Coze-
mos pois, o meu filho, e o comemos" (Bíblia. A.T. II Reis, 6: 26-29). 6 Embora sempre tenha persistido nas sociedades esse tipo de relação, levando De Mause (^7) a afirmar que a história da humanidade se fundou numa políti- ca de violência contra as crianças, esse comporta- mento paulatinamente passou a suscitar sanções da sociedade. Assis 3 assinala que nos anos de 315- d.C., na Itália criou-se uma lei que propunha sujeitar as mãos dos pais, para afastá-los do infanticídio. A mesma autora cita que no ano 830 d.C., a mulher que matasse um recém-nascido ou tentasse abortar deve- ria ser excomungada, cabendo aos sacerdotes dimi- nuir-lhe a pena e/ou dar-lhe uma penitência a ser cumprida. Na Inglaterra, no século XII, criou-se uma lei que tratava a morte de criança por nutrizes ou professores como homicídio de adulto. A violência contra criança e adolescente, no transcorrer da civilização, além do caráter arbitrário dos pais de decidirem sobre sua vida, sempre esteve muito vinculada ao processo educativo. Ela tem sido considerada, em todos os tempos, como um instru- mento de socialização e portanto, como resposta au- tomática a desobediências e rebeldias. Uma lei he- braica do período 1250-1225 a.C. dizia que, caso os filhos não dessem ouvidos aos conselhos paternos, cabia aos anciãos, puni-los, expondo-os a serem ape- drejados ou mortos. 8 Os primeiros anos da era cristã suavizaram o rigor do Antigo Testamento, sem con- tudo aboli-lo, como o mostra Mc Laughin (1982:
"Mi madre dice que no debe mimarse a los niños y me pega todas las mañanas; cuando no tiene tiempo por la mañana, lo hace al mediodia raras veces mas tarde de las cuatro. Mi madre aparece con frecuencia para agararme por las orejas y darme pescozones. Es por mi bien, de modo que cuantos más cabellos me arranca, cuanto más me abofetea, mas me convenzo de que es una buena madre y de que yo soy un hijo ingrato... Mi padre necesita descargar su pena sobre alguién y conmigo desahoga su pesadumbre, su cólera ..." (Valles; 1985: 37). 1
Minayo MCS
renda média mensal familiar de até ½ salário míni- mo per capita. Em regiões mais pobres do país, co- mo o Nordeste, este percentual chega a 58,8%, mostrando a gravidade e persistência da enorme de- sigualdade social, refletida nas precárias condições de vida dessas crianças e adolescentes. 14 Agravando essa situação, constata-se a precária condição educacional das crianças e adolescentes brasileiros. Apesar do decréscimo do analfabetismo no país, em 1997 a média de anos de estudo das cri- anças de 7 a 14 anos de idade foi de apenas 3,4; 8,7% dos adolescentes entre 10 e 14 anos e 5,4% en- tre 15 e 17 anos foram considerados analfabetos; o analfabetismo funcional (menos de 4 anos de estu- do) de adolescentes brasileiros entre 15 e 17 anos foi de 20,2%, enquanto entre os nordestinos observou- se 39,2% de analfabetos funcionais; a defasagem idade/série é muito elevada, sendo o Nordeste mais uma vez a região campeã, com 89,8% dos adoles- centes de 14 anos com atraso escolar. Os dados le- vantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es- tatística (IBGE; 1997: 47) (^14) o levam a concluir que "... a desigualdade no acesso à escola são marcadas pela condição econômica das famílias [...] confir- mando a teoria de que a renda familiar é um deter- minante da freqüência escolar". Outro elemento que contribui para a naturaliza- ção da violência que atinge crianças e adolescentes são os programas dos meios de comunicação, recente alvo de preocupação das instituições de vários países do mundo, pela forma como esse instrumento de alto impacto na cultura moderna tende a banalizar as agressões e as mortes. 15 Pesquisa realizada no Rio de Janeiro, em 1998, com 1.220 jovens de todos os estratos sociais mostra como a violência na mídia é vista pelos jovens. As cenas de agressão física exi- bidas pela tevê são consideradas uma reprodução da realidade, para cerca de metade dos jovens cariocas. Revelam também que a televisão discrimina os jovens das camadas populares, sobretudo os mora- dores de favelas e periferias, associando-os à crimi- nalidade e reforçando o estereótipo do jovem negro e favelado. Os jovens informam ainda que a propa- ganda os influencia ao consumo e que alguns se en- volvem com delitos para terem acesso a bens de con- sumo aos quais, de forma geral, não teriam acesso pela via legal. 16 Situações como essas, geradas no âmbito da cul- tura, só incomodam quando as próprias vítimas, através de algum mecanismo de resistência (inclu- sive a delinqüência) ou algum movimento de cons- ciência social, as presentificam em forma de denún- cia. Em um de seus muitos trabalhos sobre a infância
pobre no Brasil, Rizzini, 17 comenta que talvez o úni- co efeito positivo das chacinas envolvendo crianças e adolescentes nos últimos anos, em todo o país, seja trazer a tona um problema que vem de longa data sem que a sociedade brasileira o tenha enfrentado. A mão que executa crianças quase sempre está ligada a opções econômicas e políticas que conduziram cres- centes parcelas da infância à condição de marginali- dade. Buscando datar sua fala, Rizzini 17 revela que a trajetória da não-cidadania das crianças brasileiras tem origem no período colonial. Porém no momento de instauração do regime republicano, o país viveu a oportunidade de mudar os rumos da história, quando se debatia a importância de investir na infância. Ao invés de optar por políticas sociais capazes de pro- porcionar condições eqüitativas de desenvolvimento, o país criou um complexo sistema de tutela do Esta- do sobre a infância pobre. Estabeleceu e institu- cionalizou, assim, a divisão entre infâncias privile- giadas sob o manto protetor das famílias e infâncias marginalizadas, cujo destino passou a ser decidido nos asilos, nas casas de detenção, nos juizados de menores ou no interior das próprias famílias como menores trabalhadores. Tal situação perdura há 100 anos, sendo sempre diagnosticada, a posteriori , co- mo "problema grave", "prioridade" de governos, "es- cândalo" para a diplomacia internacional, sem que, na verdade, redunde em objeto de convicção ou de- terminação política. Em suas expressões, a violência estrutural tem várias formas-limite de manifestação. Três maiores expressões de vulnerabilidade são comentadas a seguir: os chamados "meninos e meninas de rua"; os "meninos e meninas trabalhadores" e as "crianças e adolescentes institucionalizados". Em relação aos meninos e meninas de rua, muitos estudos têm sido feitos no país e nós mesmos buscamos, através da literatura existente e de traba- lho de campo por amostragem em todas as regiões do país, traçar o seu perfil. 18 Tanto a bibliografia exaustivamente analisada, como nossa experiência de campo revelaram que a primeira causa de ida para a rua, por parte das crianças e adolescentes, é a mi- séria e absoluta falta de condições familiares para sua subsistência; e a segunda, que constitui o tópico seguinte de nossa reflexão, são os conflitos fami- liares. Nas ruas, eles convivem com ameaças a sua vida, indução ao crime, maus tratos praticados por policiais ou por outros, sendo explorados por comer- ciantes, seguranças, além de serem estigmatizados como "futuros bandidos". É bem verdade que o fenômeno meninos de rua não é nem recente e nem privilégio do Brasil. Prati- camente todos os países da América Latina apresen-
ViolÍncia contra crianÁas e adolescentes
tam essa forma de violência estrutural; 19 e também nos Estados Unidos este fenômeno evidencia-se nos momentos de crise econômica. A exploração do trabalho infanto-juvenil consti- tui-se numa segunda expressão muito forte da vio- lência estrutural. Segundo dados do IBGE, durante a década de 80 a taxa de atividade média de crianças na faixa dos 10 a 14 anos era de 18%, no auge da crise econômica do ano de 1992 passou para 22,4%. A Pesquisa Nacional por Domicílios do IBGE de 1997 felizmente constata uma queda nos percentuais na década de 80 e início dos anos 90. Hoje são 2, milhões de pessoas da faixa etária de 10 a 14 anos que estão trabalhando (16,9%). Entre os jovens de 15 a 17 anos constatou-se um decréscimo de 54,3% em 1992 para 45,9% em 1997, totalizando 4,8 mi- lhões de jovens trabalhadores. As diferenças regio- nais novamente se destacam em 1997, quando ainda 24% das crianças nordestinas na faixa dos 10 aos 14 anos contra 13,2% das sulistas. As crianças e adoles- centes representam ainda 10,1% da força de trabalho existente no país, no final deste século. (^20) Ressalta-se que essas estatísticas não contemplam o trabalho de crianças com menos de 10 anos, comum tanto em área rural (agricultura) como urbana (mercado infor- mal). Estimativas para o ano de 1995 informam que existiam no país 522 mil crianças trabalhadoras com menos de 10 anos, representando 3,25% das crianças naquela faixa etária. 21 Mateos 22 fez uma verdadeira radiografia desta situação no país, mostrando que essa forma de ex- ploração existe em setores que empregam grande quantidade de mão-de-obra em relação ao capital in- vestido. Nisso se incluiam indústrias modernas co- mo as siderúrgicas e as exportadoras de calçados e suco de laranja, além do Projeto Proalcool como um todo, indústrias metalúrgicas, naval e de eletro- domésticos. A participação dessas empresas se dava de forma indireta, através dos processos de tercei- rização e flexibilização. Nessas novas formas de organização de trabalho, crianças e adolescentes entram em grupos formados por trabalhadores que se reúnem para prestar serviços às grandes empresas, quase sempre ganhan- do muito pouco, sem direitos sociais e com intensifi- cação das jornadas. Mateos 22 mencionava jornadas de 12 horas para crianças em carvoarias, 11 horas na colheita de laranja e 12 horas nos cortes de cana. Respondendo à pergunta "quem garante o fatura- mento e a sobrevivência de empresas exploradoras de crianças?" a autora mostrava que, em última ins- tância, a Petrobrás, a Mercedes Benz, a Volkswagen, a Bombril, a GM, a Ford, a Fiat, a Cofap, a Cosipa, eram algumas das compradoras de insumos produzi-
dos por estas crianças ou de produtos fabricados a partir delas. Dados do IBGE mostram que é elevada a jornada de trabalho, a ponto de apenas ¼ dos ado- lescentes de 15 a 17 anos conseguirem conciliar es- tudo com trabalho. 14 Mas esse também não é um problema exclusiva- mente brasileiro. Mateos (^22) assinala em seu trabalho situações muito graves de trabalho infantil em Portu- gal, na Espanha e na Alemanha. Certamente seu es- tudo não é exaustivo. Um levantamento mais com- pleto mostraria uma abrangência muito maior dessa forma de violência. A exploração do trabalho de cri- anças e adolescentes vem acompanhando o processo de globalização. O caso do trabalho infantil no Brasil vem sendo fortemente acompanhado e desestimulado pelas Or- ganizações Não-Governamentais (ONGs) de defesa de direitos e pela Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Igualmente o próprio governo, através do Ministério da Justiça, está monitorando o problema e criando políticas compensatórias que in- centivem os pais a colocarem seus filhos e os man- terem na escola. Esse investimento coletivo que se intensificou nos últimos três anos explica, em parte, o relativo sucesso mostrado pela diminuição das taxas de emprego infantil. O monitoramento do problema, porém, não consegue competir integral- mente com as situações de miséria relativa e absolu- ta que permanecem no país e são as verdadeiras pro- dutoras do status de menor trabalhador. Uma terceira forma de expressão da violência es- trutural é a institucionalização de crianças e adoles- centes, seja como meio de se contrapor ao abandono, seja por motivos considerados ressocializadores. To- da a história revela não só a ineficácia, mas a total incompetência dessas instituições, asilos, refor- matórios, serviços de assistência e de "bem estar" entre os quais o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), a Fundação Nacional do Bem-Estar do Me- nor (FUNABEM) e as Fundações Estaduais do Bem- Estar do Menor (FEBEMs) por exemplo, para prover o crescimento e o desenvolvimento desses seres dis- criminados. Uma pesquisa específica de Altoé 23 des- creve o cotidiano de crianças e adolescentes institu- cionalizados em uma determinada fundação filan- trópica do Rio de Janeiro, que atende a 2.000 desses estudantes pobres. A autora detalha os meandros da violência e da inadequação motivadas por transfe- rência múltipla de ambiente de vida; rodízio de fun- cionários; atendimento impessoal e despersona- lizante; impossibilidade de construir laços objetivos significativos; hipoestimulação do desenvolvimento motor; fechamento para o mundo exterior, monoto- nia do cotidiano e pobreza das relações sociais.
ViolÍncia contra crianÁas e adolescentes
estudando 212 casos de maus-tratos atendidos desde 1996 no Ambulatório de Família da Universidade Federal do Rio de Janeiro, encontrou 35,1% de casos confirmados dessa forma de violência. A literatura internacional mostra que 70% dos atos de violência física, em geral, são cometidos pelos pais, e as faixas de idade mais vulneráveis são as de 7 a 13 anos. (^2) É importante mencionar que se trata de um fenômeno que se revela em todas as classes sociais. As conseqüências mais freqüentes de violência física são lesões abdominais, fraturas de membros, mutilações, traumatismos cranianos, queimaduras, lesões oculares e auditivas, muitas delas levando a invalidez permanente, ou temporária, ou até à morte. Muitos autores, dentre eles Guerra 2 associam (obviamente, de forma não-linear) punição física com delinqüência, por causa dos sentimentos am- bíguos, confusos ou vingativos que ela gera, como angústia, raiva, ansiedade, medo, terror, ódio e hos- tilidade. Dentre as expressões dessa "revanche" provocada pela violência física, muitos estudiosos colocam o parricídio, o matricídio ou o fratricídio, fechando o ciclo do abuso infantil. A violência sexual que se configura como todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um adulto (ou mais) em uma criança ou ado- lescente, tendo por finalidade estimulá-los sexual- mente e obter estímulo para si ou outrem. 2-4^ Nos es- tudos sobre tal fenômeno, todos os autores indicam a existência de abuso sexual no âmbito familiar. 30 Os principais agressores são o pai, o padrasto, ou ainda, pessoas conhecidas e do relacionamento familiar com a vítima. Essa forma de abuso costuma ter co- mo conseqüência a saída do lar, principalmente por parte das meninas. Na rua, os agressores costumam ser policiais e companheiros, quando muitos es- tupros são relatados pelas adolescentes. Para muitas delas, tais violências resultam em gravidez precoce e indesejada, assim como em casos de aborto. A quantificação da violência sexual é muito difí- cil porque, envolvido em tabus culturais, relações de poder nos lares e discriminação das vítimas como culpadas, esse fenômeno aparece substimado nas es- tatísticas do sistema de saúde e das secretarias de polícia. Porém alguns exemplos localizados podem ilustrar a sua ocorrência. Dados do Centro Brasileiro da Criança e do Ado- lescente de Recife (CBCA) 31 registram 3.667 cri- mes, de 1987 a 1989, sendo que 37% estavam rela- cionados a posse sexual mediante fraude e sedução; e 13% eram casos de estupro. Em São Paulo, Saffioti (^32) estudou 346 crimes contra crianças e ado- lescentes em 1991 e encontrou 19,9% de estupros e 17,5% de atentado ao pudor. Na pesquisa de
Deslandes 4 sobre as notificações de violência contra o mesmo grupo, nos Centros Regionais de Atenção aos Maus-Tratos na Infância (CRAMIS), a autora observou que 7% de todas elas se referiam a abuso sexual. Moraes, 29 investigando uma unidade que funciona dentro de um hospital universitário, consta- tou maior percentual de encaminhamentos por abuso sexual: 31,6% dos casos suspeitos e 15,3% dos con- firmados. A violência psicológica , também denominada tortura psicológica, que ocorre quando os adultos siste-maticamente depreciam as crianças, bloqueiam seus esforços de auto-estima e realização, ou as ameaçam de abandono e crueldade. Trata-se de um tipo de relação muito pouco estudado entre nós, mas que tem um efeito muito perverso no desenvolvi- mento infanto-juvenil. Em seu trabalho recente, Guerra, 2 recuperando as idéias sobre a natureza in- fantil na Europa do século XVII e XVIII, mostra que Locke, por exemplo, a considerava como uma natureza menor, a ser moldada pela compreensão do adulto como poderoso e moralmente certo. Dessa forma, segundo seu ponto de vista, era importante se exercer a violência física contra a teimosia, junto com a inculcação do sentimento de culpa e de ver- gonha. Nos Estados Unidos a violência psicológica é hoje bastante notificada, comparecendo com cerca de 8% de todas as denúncias de violência. Os estudos de Deslandes 4 nos Centros Regionais de Atenção aos Maus-Tratos na Infância (CRAMIs) de São Paulo classificam esse tipo de violência co- mo tendo uma notificação relativa, ainda pouco pre- sente, com 16,4% do total das agressões. Moraes 29 identificou 20,7% de casos confirmados de maus- tratos psicológicos entre as crianças e adolescentes atendidas em ambulatório especializado para vítimas de violência. Trata-se aqui, também, de um tabu, pois a criança e o adolescente continuam, apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a serem considerados posse exclusiva dos pais, o que lhes daria o direito de tratá-las como bem enten- dessem. Desta forma o abuso psicológico freqüente- mente é tido como forma de educar com rigor. A última classificação que é importante men- cionar são as negligências. Elas representam uma omissão em relação às obrigações da família e da so- ciedade de proverem as necessidades físicas e emo- cionais de uma criança. Expressam-se na falta de ali- mentos, de vestimenta, de cuidados escolares e com a saúde, quando as falhas não são o resultado de cir- cunstâncias fora do controle e alcance dos respon- sáveis pelos adolescentes e crianças. Trata-se de um tipo de ação difícil de ser quantificado e qualificado, sobretudo quando as famílias estão em situação de
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miséria. Nos Estados Unidos, hoje se notificam in- tensamente as negligências, constituindo-se em 45% das agressões contra a infância, nas estatísticas ofi- ciais. Em pesquisas realizadas nos CRAMIs, Deslan- des 4 encontrou um percentual de notificação de 23,5% no total das violências registradas, só abaixo das agressões físicas. A autora observa que a relevância do percentual para a negligência, ao que tudo indica, está associada a situações limítrofes en- tre pobreza e maus-tratos. Ou seja, uma vez que a negligência se define pela omissão no trato dos cuidados e necessidades das crianças, a reconhecida ausência de condições econômicas dessas famílias muitas vezes dificulta o julgamento mais preciso en- tre prática abusiva e impossibilidade de prover atenção. No entanto, a escassez de dados sobre as classes médias e altas não pode esconder a hipótese de que, possivelmente nesses grupos sociais, a ne- gligência e o abuso psicológico (além das agressões físicas) constituam problema relevante. Essa hipó- tese está associada ao próprio modo de vida desses estratos, onde a concorrência e outros estímulos ten- dem, de um lado, à ausência real e moral dos pais de seus lares e, de outro à pressão sobre crianças e ado- lescentes para se destacarem social, econômica e in- telectualmente, em função do sucesso futuro no mer- cado de trabalho. As análises sobre o fenômeno da violência intra- familiar nos levam a concluir que os lares não são tão sagrados quanto parecem, embora várias expe- riências mostrem que são espaços passíveis de inter- venção para mudanças. Sobretudo porque a violên- cia contra a infância e a adolescência é reconhecida como componente importante da violência social e como elemento propulsor e reprodutor de suas ex- pressões, o campo das intervenções tem que contem- plar o âmbito cultural, da prevenção e também, por vezes, a repressão e o castigo de pais que mutilam ou até matam seus filhos.
ViolÍncia infanto-juvenil
Em geral a imprensa nacional e mundial se esmera em mostrar o outro lado da violência, ou seja, o da delinqüência infanto-juvenil. Esse problema não é apenas nacional. O estudo de Assis e Constantino 26 mostra que no Rio de Janeiro, no ano de 1994, havia 134 jovens de 12 a 7 anos para cada cem mil habi- tantes da mesma faixa etária, enquanto na cidade de Nova York encontrava-se uma relação de 1. jovens de 10 a 17 anos por cada cem mil jovens daquela cidade. Em todo o país, no ano de 1997, havia 20.
adolescentes entre 12 e 20 anos cumprindo medidas sócio-educativas (internamento, semi-internamento, escolas especiais, serviço à comunidade), em sua maioria do sexo masculino (há uma relação de 12 in- fratores masculinos para cada feminino). 33 Segundo Volpi, 34 havia no Brasil, nos anos de 1995 e 1996, 4.245 adolescentes privados de liberdade. Observan- do as informações sobre renda familiar, 25% deles provêm de famílias que recebem menos de um salário mínimo e 34,2% entre 1 e 2 salários mínimos, comprovando a origem social mais pobre dos indiví- duos internos em instituições. Assis, 3 em vários de seus trabalhos mostra que esse assunto já preocupava a sociedade greco-ro- mana. Rapazes ricos tinham o hábito de percorrer as ruas aos bandos, à noite, espancando e maltratando pessoas e destruindo lojas. Veyne (^5) comenta que a punição primeira era a admoestação pelo governo, e os casos de reincidência eram tratados com açoites. Em todas as sociedades, atuais e mais antigas, os bandos de adolescentes molestando adultos e pro- priedades são costumeiros e geralmente desculpados como eventos próprios à rebeldia da idade. Também Burke 35 menciona o papel das gangues de rapazes na sua análise histórica, que vai desde 1590, início da Idade Moderna, até nossos dias. Numa sociedade com tantas desigualdades como a brasileira, esse fato necessita ser analisado com maior cuidado, porque aparece quase sempre asso- ciado à questão de classe, e como problema dos po- bres, crianças de rua ou institucionalizadas. É por is- so que propomos tratá-lo articulado à violência es- trutural, inclusive porque costuma ser usado, por grupos voltados para a "limpeza social", como álibi para extermínios, execuções e homicídios. Por exem- plo, um estudo do Centro de Articulação de Popu- lações Marginalizadas (CEAP), (^36) informa as ocu- pações dos jovens vítimas de homicídios em 1992 e 1993 no Rio de Janeiro como sendo estudantes, aviões/traficantes, e assaltantes, mas 60% dos mor- tos não tinham nenhuma vinculação com a crimina- lidade, ou seja, eram simplesmente crianças e ado- lescentes pobres. Nesses casos junta-se o preconceito com a situa- ção de precariedade de qualquer projeto de vida. Nos grandes centros urbanos as alternativas são a indús- tria da droga, o subemprego, ou empregos conside- rados desqualificados. Tomando como exemplo o Rio de Janeiro, para onde temos informações, uma pesquisa dem1996, da 2ª Vara da Infância e Ado- lescência, vinculada à Secretaria de Justiça do Esta- do, oferece alguns dados, segundo os quais 49% dos infratores moram em favelas; o número de infratores tende a crescer; e a maioria dos delitos ocorre na
Minayo MCS
que a violência aparece como questão substantiva. Os movimentos de prevenção e de atenção especia- lizada surgem em conseqüência do reconhecimento da morbi-mortalidade por violência como um pro- blema muito sério, tanto para a saúde nos seus aspec- tos sociais, como objeto de atenção primária, se- cundária e terciária. Também no Brasil, é nos anos 80 que começam a se esboçar diagnósticos e pro- postas, pari passu com o movimento social que de- semboca na Constituição de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Desta forma, hoje já se têm dados de mortalidade e morbidade, ainda que não suficientes, capazes de dar suporte à políti- cas e estratégias de ação, como se verá a seguir. Os estudos epidemiológicos revelam como prin- cipais resultantes da violência, as fraturas e queima- duras em crianças de baixa idade, e as lesões por agressões físicas e suicídios, esses últimos sobretudo na adolescência. Tais achados têm sido reiterada- mente demonstrados na literatura. Deslandes, 40 in- vestigando o atendimento de emergência prestado a 1.748 crianças e adolescentes em dois hospitais públicos do Rio de Janeiro, relata a elevada freqüên- cia de "quedas" (39%), principal causa de atendi- mento de crianças pequenas e as violências interpes- soais (agressões, violência doméstica e "balas perdi- das") mais comuns entre adolescentes. Informa ain- da a presença significativa de violências auto-infligi- das (suicídio e overdoses de drogas). A visibilidade, a compreensão e a magnitude da morbidade ainda ficam muito prejudicadas por várias razões. As notificações de agravos por violên- cia ainda não constituem uma cultura internalizada na sociedade brasileira, como mostram os estudos de Deslandes; 4 somente os de média e intensa gravi- dade chegam aos hospitais ou centros de saúde; e muitos dos eventos que aí chegam, não são diagnos- ticados como tal pelos profissionais de saúde, seja por falta de formação para esse diagnóstico, seja por falta de interesse de entrar em questões não biológi- cas. Em geral, a violência intra-familiar, particular- mente, é tratada como problema do âmbito íntimo e privado das famílias. Há hoje, no Brasil, atuando na área de saúde, na desnaturalização da cultura patriarcal e prevenção, algumas instituições, como os Centros Regionais de Atenção aos Maus Tratos na Infância (CRAMIs) de Campinas e outros municípios de São Paulo, Asso- ciação Brasileira de Proteção à Infância e a Ado- lescência (ABRAPIA) e Associação Brasileira de Crianças Abusadas e Negligenciadas, em Belo Hori- zonte, o Laboratório da Criança (LACRI) em São Paulo, e no momento a forte presença da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) 41 que merecem desta-
que. Há igualmente grupos hospitalares e ambulato- riais como o Instituto de Pediatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, estruturados para este tipo de atendimento. Mas seu âmbito de ação é ainda res- trito e pouco visível. A mortalidade por violência constitui-se atual- mente na 2ª causa de morte para a população em ge- ral, a primeira para as crianças e adolescentes de 5 a 19 anos e a segunda entre crianças de 1 a 4 anos, per- dendo, nessa última faixa etária, por pouco para as doenças do aparelho respiratório. Para se ter idéia de sua magnitude, em 1996, de todas as mortes de cri- anças entre 1 e 4 anos, 22,6% se deveram as causas violentas; entre 5 e 9 anos, 48,2% foram por violên- cia (na sua quase totalidade por acidentes de trânsito e homicídios); na faixa de 10 a 14 anos, foram 56,3%; e no grupo de 15 a 19 anos, 72,2%. (^14) Ou seja nosso contingente infanto-juvenil está morrendo mais por conflitos sociais que por doenças. Essa situação é particularmente preocupante porque nos últimos 15 anos está havendo um deslo- camento da incidência dos homicídios (dentre as causas externas de morte, a que mais cresce) para faixas de idade mais jovens. Conforme mostra Souza 42 em sua análise epi- demiológica, houve um crescimento proporcional, na década de 80, da ordem 79% nos óbitos por homicídios nos grupos de 10 a 14 anos e de 45,3% nos de 15 e 19 anos. Essa intensificação das mortes por homicídios em faixa etárias mais jovens que aquelas onde são tradicionalmente mais freqüentes, deve-se, sobretudo, à vitimização dos componentes do sexo masculino, para os quais, a mortalidade na faixa de 10 a 14 anos cresceu 93,3% e na de 15 a 19 anos, aumentou 43%. Também no sexo feminino, a faixa de 10 a 14 anos teve um salto expressivo de 43,9%. Souza e Minayo (^43) chamam atenção para a faixa de 0 a 4 anos, na qual as proporções de mortes por causas externas, apesar de sua baixa freqüência, passam de 2,3% para 3,8% de 1980 a 1989, signifi- cando um salto de 65,2%. Ora, estudos qualitativos realizados por Mello Jorge (^44) em São Paulo, sobre esse grupo de idade, revelam se tratar, quase todas, de mortes por crimes domésticos. Esse tipo de mortalidade de crianças e jovens tem causado impacto na dinâmica do atendimento emergencial e é responsável por parte dos elevados custos da violência para a saúde. 45
ViolÍncia contra crianÁas e adolescentes
A área da saúde tradicionalmente tem concentrado seus esforços em atender os efeitos da violência: a reparação dos traumas e lesões físicas nos serviços de emergência, na atenção especializada, nos proces- sos de reabilitação, nos aspectos médico-legais e nos registros de informações. Ultimamente, ainda de for- ma localizada e como iniciativas voluntárias, ou se- ja, ainda não institucionalizadas, começa a haver uma abordagem mais integral, incluindo aspectos psico-sociais, tanto do impacto sobre as vítimas co- mo nos fatores ambientais de caracterização dos agressores. 46 A Sociedade Brasileira de Pediatria junto com o Ministério da Justiça e a Fundação Oswaldo Cruz recém lançou um Guia sobre atenção aos maus-tratos para profissionais de saúde. 40 Outra iniciativa simi- lar, enfocando os agentes comunitários de saúde está
em fase final de elaboração pelo Ministério da Saúde. Apesar dessas importantes iniciativas, o serviço público de saúde ainda tem muito a cami- nhar. Países como Estados Unidos e Canadá estão atuando na direção da prevenção há mais de uma dé- cada, com resultados, que os dados comprovam, en- volvendo famílias, bairros e conscientização da so- ciedade em geral. Desta forma, seja a partir de ações específicas do setor saúde para prevenir e para tratar as conseqüên- cias da violência; seja na sua articulação interdisci- plinar, interprofissional e multi-setorial, é importante ter em mente que nossas energias devem ser enca- minhadas para a construção dos direitos humanos e sociais. Pois atuar contra as causas da violência sig- nifica atuar também contra a pobreza e a miséria que sacrificam nossos meninos e meninas e respeitar seus direitos consagrados na Constituição e no Es- tatuto da Criança e do Adolescente.
Reflexões a partir do campo da saúde pública. Rev Cienc Saúde Coletiva 1999; 4: 7-32.