













































































Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Bert Helinger
Tipologia: Notas de estudo
1 / 85
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Bert Hellinger
Gabriele ten Hövel
conversas sobre os caminhos de uma vida
Newton A. Queiroz
2006
Sumário
Apresentação da edição brasileira............................................................................................ Prefácio da edição alemã.............................................................................................................. 08 “O importante para mim foi sempre o crescimento interno”........................................ Fases da vida “Professor eu nunca quis ser”........ 13 “No fundo, cresci sem passar pela juventude”. 15 A guerra “Há um maldito alemão escondido no trem”. 16 A fuga “Essa decisão não foi livre”.............. A ordem religiosa “Eu não fazia nenhuma ideia”......... Como missionário de Mariannhill na África “Pessoas ou ideais? O que você sacrifica pelo quê?”. 23 A dinâmica de grupo “Eu vou sair”........................................... O término do tempo de serviço religioso “Até os 50 anos eu não me sentia pronto”. 27 Etapas de desenvolvimento “Negam-me o direito de cometer erros”................................................................................ 31 Sobre o trabalho com grandes grupos, o esclarecimento do encargo do cliente e o trato com imigrantes “Crescimento exige oposição”........ 31 Sobre a severidade no processo terapêutico “Não afirmo que os imigrantes precisam voltar”. 32 “Eu trabalho com o grupo inteiro”. 32 “Não faço declarações políticas”... 33 “Não sou um mecânico”.................... 33 O esclarecimento do encargo “Não trabalho contra resistências”. 35 A interrupção “Esses insights salvam vidas”..........
Sobre pais, puberdade, relação conjugal e a arte de tomar Primeiro círculo: Os pais................... 36 Meditação sobre o primeiro círculo do amor O segundo círculo: Infância e puberdade. 37 Meditação sobre o segundo círculo do amor Terceiro círculo: Dar e tomar.......... 40 Meditação sobre o terceiro círculo do amor Segunda meditação sobre o terceiro círculo do amor Quarto e quinto círculos do amor.. Concordar com todos os seres humanos e com o mundo “Quem se alegra com a própria mãe, ganha”. 42
Sobre felicidade e alegria “O pai não precisa lutar mais”......... Sobre a alienação dos filhos “Eu honro as mães por uma compreensão filosófica”. 45 Sobre o que realizam as mães e os pais
A ligação entre perpetradores e vítimas “Acolho em meu coração todos os excluídos”. 46 “As vítimas têm o direito de cidadania em nosso coração”. 47 “Eu me distancio dos perpetradores”. 48 “Vejo Hitler como um ser humano, sem desculpar nada”. 49 Então os cristãos crucificaram os judeus”. 51 Sobre anti-semitismo, judeus e cristãos
Sobre a autonomia e a imaturidade dos adultos “O entusiasmo tem algo de delirante”. 55 Sobre o entusiasmo e o recolhimento “Ninguém apela para a sua consciência quando faz algo de bom” .. 56 Sobre o infantilismo da “boa consciência” “Participação consciente no sofrimento”. 58 Sobre a inevitabilidade da culpa “Esse é o ponto final da individualização”. 60 Sobre a consciência arcaica e o campo “Sou um alemão - sem orgulho”.... 61 Sobre reconciliação e patriotismo
“O passado deve poder ser esquecido no coração”. 64 Sobre vingança e indignação como formas de compensação “A indignação desconhece a compaixão”. 65 Sobre a paz e a boa consciência “Se o passado pode ser esquecido, existe um futuro”. 66 Constelações políticas “Então os poloneses amarão mais os alemães...?”. 69 Sobre as exigências de reparação
"... que o impensável se tome visível”. 74 Sobre informação e campo “Se eu investigar, terei uma intenção egoísta”. 75 Sobre o controle de resultados e a comprovação da eficácia “Tudo o que se move é movido por outro”. 77 Sobre outros poderes, religião e liberdade de decidir “Precisamos ir em frente...”............. 79 Sobre os limites das soluções
Apresentação da edição brasileira
No princípio do ano, Bert Hellinger me enviou um exemplar do original deste livro, seu novo lançamento. Li-o de um só fôlego e transmiti a ele comentários entusiasmados, oferecendo-me para traduzi-lo. Ele concordou, e foi essa a sexta tradução que me confiou. Meus comentários foram publicados em sua home page e em sua revista.
A responsabilidade pela indicação deste livro, somada à longa experiência adquirida como participante, representante ou tradutor em cursos de formação e treinamento em constelações familiares, levou-me a redigir esta breve apresentação para a edição brasileira.
Gabriele ten Hövel tem o mérito de ter trazido à luz, com sua entrevista, um retrato vivo e fiel de Hellinger - o mais completo de que dispomos. O retrospecto dos anos de juventude e formação, com fatos inéditos ou pouco conhecidos, ajuda-nos a entender sua posterior evolução.
A entrevistadora retoma objeções, levantadas na Alemanha, às ideias e aos procedimentos de Hellinger. Questiona-se, por exemplo, sua concepção do espaço terapêutico em constelações realizadas diante de grandes grupos e algumas afirmações suas relativas a imigrantes estrangeiros. Curtas e incisivas ou longas e mais fundamentadas, suas respostas esclarecem, mobilizam e, por vezes, também surpreendem.
Uma pausa tranquila nos é proporcionada pelo capítulo dedicado aos “cinco círculos do amor”, com as correspondentes meditações, ao alcance de cada um. Em seguida, retoma-se a discussão, abordando declarações sobre responsabilidade, culpa e reparações no contexto do passado alemão e, de modo especial, sobre a pessoa e a atuação de Hitler.
“Somos todos tomados a serviço” – esta afirmação fornece-nos uma chave para entender a posição de Hellinger ao recusar a distinção entre bons e maus. “Os rejeitados têm sempre um lugar em meu coração. Com isso, coloco-me sistemicamente numa posição em que posso realmente ajudar a todos.”
O tema da reconciliação assume em nossos dias uma importância especial, com a irrupção generalizada de conflitos étnicos e religiosos. Com seu novo método de seguir os “movimentos da alma”, Hellinger permanece a serviço das forças que conduzem a essa reconciliação.
Agradeço a Bert Hellinger pela sinceridade e integridade de suas respostas sobre o longo e rico caminho de sua vida. Aos leitores, desejo que acolham esses diálogos com receptividade e sem preconceitos e que tirem daí algo de valioso para suas próprias vidas.
Newton A .Queiroz
Prefácio da edição alemã
Estávamos em fevereiro. Saindo da Rádio da Baviera, caminhamos juntos, pela neve lamacenta, até a estação central de Munique. Perguntei a Hellinger: “Por quanto tempo o senhor ainda continuará trabalhando?” “Ah,” – respondeu ele – “acho que em breve já será bastante.” Tinha completado 70 anos. Um livro dele tinha sido publicado, e acabávamos de fazer o primeiro programa radiofônico.
“Bert Hellinger? Quem é ele?”, perguntou-me o redator. Somente quando lhe assegurei tratar-se de um homem que revolucionara o pensamento terapêutico é que ele confiou em mim - com dor de barriga. Depois de ouvir as fitas com o programa pronto, o teólogo formado comentou: “Precisei levantar-me várias vezes e dar voltas ao redor, de pura agitação, indignação e choque de sentimentos.” Uma amiga, a quem exibi trechos da gravação, disse apenas: “Mas onde é que você se meteu de novo, Gabriele!” E quando eu quis ver os primeiros vídeos de Hellinger, em companhia de uma outra pessoa, ela se levantou, logo no início, e disse: “Não consigo assistir a isso, ele fala como o nazista Freisler.”
Dez anos se passaram. O homem que presumivelmente falava como Freisler tomou-se mundialmente famoso. Seus livros são lidos por milhões de pessoas em todo o mundo, em 19 idiomas, inclusive chinês, português e sérvio. Seu método de constelar famílias é oferecido em vistosos folhetos e cartazes, pendurados em lojas de produtos naturais e em centros de formação de adultos.
E ele é suspeito. Já naquele tempo tinha quebrado muitos tabus e era um desafio para os ânimos combativos e rebeldes que tinham aplaudido os ideais libertários de 1968. Autonomia e emancipação foram as palavras sagradas que muitos levantaram contra esse homem que falava de vinculação e de ordens do amor - autodeterminação, liberdade, resistência, mas ainda era um protesto inocente.
Hellinger continuou a trabalhar, em breve diante de grandes grupos - o que foi e ainda é um motivo de escândalo. Cada vez com maior frequência, as constelações mostravam quão incisivamente o nacional- socialismo continuava a atuar nas famílias. Talvez fosse esse o seu foco principal, que pouco a pouco se deslocou. E quem não se importa com temas como fuga e banimento, nazismo e resistência, assassinato de inválidos, mortes nos bombardeios de Dresden, de Dortmund, de Hamburgo? Em que família alemã não existem perpetradores ou vítimas?
As constelações trouxeram à luz novas e chocantes revelações para muitos – por exemplo, que perpetradores e vítimas estão vinculados entre si. Frases como “Eu acolho os perpetradores em meu coração” eram uma provocação, pois foi apenas nos últimos 30 anos, desde o milagre econômico e a rebelião de 1968, que os alemães aprenderam a tomar consciência das vítimas.
Em seguida, Hellinger viajou por todo o mundo - Israel, China, Japão, Sérvia, Coréia, Austrália, América do Sul. Em quase todos os países teve de lidar com guerra e tortura, resistência e desterro. O trabalho com guerrilheiros, índios, fascistas e antifascistas, guerrilheiros e lacaios de outros poderes o mudou.
De repente ficou claro: a mudança começa na alma - e apenas na alma, mas a paz só é possível quando desmontamos as antigas trincheiras e deixamos de excluir os perpetradores. Então, tudo se tomou definitivamente político. Hellinger foi acusado de ofender as vítimas e de zombar delas.
Na Alemanha, esse homem atingiu o calcanhar de Aquiles do espírito da época, pois estava em voga a atitude “politicamente correta”, tão natural à primeira vista, de tomar o partido das vítimas contra os perpetradores.
Então algo aconteceu em Leipzig - um pesadelo para qualquer terapeuta. Uma cliente que tinha feito uma constelação com Hellinger suicidou-se. Não sei quantos terapeutas já passaram por isso - naturalmente esse é um segredo bem protegido. Agora havia alguém no pelourinho. Um sussurro percorreu o reduto dos terapeutas. O método inteiro caiu em descrédito - principalmente na mídia.
Um artigo no semanário Der Spiegel desencadeou o ataque contra Hellinger. As acusações eram muitas: - Que espécie de formação ele tem? - Uma vez missionário, sempre missionário! - Tolices esotéricas! - Um monte de diletantes que imitam isso! - Um católico com fantasmagorias, que prega “ordens” reacionárias e exige submissão! - Um homem que, em tempos de crise, sabe manipular ovelhas sem vontade e pessoas que precisam de orientação. - Além de tudo, um inimigo das mulheres - e agora uma morte!
ele desfigura a imagem convencional do ‘bom’ alemão, segundo a qual os perpetradores são sempre os outros.
O historiador Götz Aly, de Frankfurt, vê aí a presença de um mecanismo de defesa, cultivado de bom grado até hoje. Ele relata, em seu impressionante livro Hitlers Volksstaat (O Estado popular de Hitler), que a “ditadura de favores” do nacional-socialismo beneficiou todos os alemães, especialmente os trabalhadores e as classes menos favorecidas. Seus números perturbam a projeção da culpa sobre “a burguesia”, “os ideólogos do racismo”, “o imperialismo” ou os paladinos de Hitler. Os alemães - bombardeados - moravam em residências judias, dormiam em camas que tinham sido dos judeus, sentavam-se em sofás judeus. Comiam pão feito com trigo polonês enquanto os poloneses morriam de fome. Abriam caixas de sal e ovos, frangos e mel da Ucrânia e deleitavam-se com café, lingerie e chocolate da Bélgica ou da França - luxos esses comprados ou roubados de outros povos pelas tropas alemãs de ocupação. Götz Aly calcula que tudo o que se consumia na Alemanha - onde raramente alguém morria de fome durante a guerra - tudo o que era comido nas mesas alemãs era temperado com assassinatos. Pequenas ascensões, grandes reformas, favorecimentos sociais — tudo isso foi comprado através do roubo, da fome e do assassinato de outros.
E isso ainda envolve algo bem diferente: muitos de nós devem sua existência ao fato de que não foram nossas mães, mas outras mulheres, outros homens e outras crianças que tiveram de morrer e perecer de inanição. O que pode haver de errado nesse luto modesto, que consiste em chorar com as vítimas, em vez de combater por elas contra “os” perpetradores – e quais?
Uma última pergunta: o que há de tão perigoso em ver o nacional-socialismo também como um movimento guiado por poderes desconhecidos para nós? O que há de tão inconcebível em dizer que também Hitler foi “tomado a serviço” e, portanto, que o mal, a crueldade e a brutalidade também faziam parte de uma realidade desejada? Naturalmente, isso é um desafio. “Tudo desaba, não existe mais nenhum apoio”, diz uma amiga minha. Talvez seja isso que intranquilize uns e converta outros em perseguidores. A imagem do mundo como um espartilho se desfaz. Associar o esclarecimento sobre as causas da guerra e sobre o fascismo a uma atitude consciente de que não podemos controlar, determinar, impedir e mudar tudo - essa é uma provocação com que Bert Hellinger nos confronta.
O próprio Hellinger seguiu desde os seus 20 anos um caminho de contemplação e de purificação interior. Ele não aderiu a nenhuma ideologia. Isso pode ser percebido por qualquer pessoa que realmente se ocupe com o trabalho dele. Talvez tenha sido esse o seu caminho: não se perder num mundo composto de bem e mal. Ele pode não ser simpático a muita gente em nossa época - mas por que levar esse homem ao descrédito?
Hellinger exige de nós um esforço intelectual e espiritual para ver os crimes e as pessoas, vítimas e perpetradores, como seres humanos, sem tirar-lhe a responsabilidade por sua ação. Não é isso uma forma de esclarecimento, uma renúncia a uma concepção mágica de progresso? Talvez se trate aqui, simplesmente, de um pouco de modéstia - da relativização da fantasia de onipotência, segundo a qual é suficiente pesquisar, lutar, saber – naturalmente, do “lado certo” – emancipar-nos e protestar, para que no mundo tudo mude para melhor.
Naturalmente, existem críticas justificadas a Hellinger. Ele é rude e obstinado, imprevisível, implacável, provocador. Ele não se deixa ensinar. Pois bem. Ele é o professor - e seus alunos cresceram e tomaram seus próprios caminhos.
Contudo, mesmo para quem se distanciou interna ou externamente desse senhor idoso, algo é claro para quase todos: com suas percepções sobre as profundezas da dinâmica sistêmica, ele trouxe algo de novo ao mundo. Esses insights estão hoje incorporados à bagagem terapêutica e ao equipamento do bom conselheiro empresarial. Através da configuração espacial de sistemas, Hellinger encontrou um instrumento de diagnóstico que resiste ã prova da pesquisa científica. Isso não havia antes. O papel que desempenhou a “repressão”, no século passado, cabe, neste século, ao “envolvimento”. Através de Bert Hellinger, temos um conhecimento maior sobre o que acontece nos sistemas, sobre consciência e culpa, vínculo e solução, alma e ser. A base empírica para isso - também porque ele alargou o espaço terapêutico - tomou-se muito mais ampla do que a de Freud jamais pôde ser. Ela cresce constantemente: através de centenas de bons terapeutas, conselheiros e pedagogos, que com toda a naturalidade trabalham com constelações.
Em notável contraste com o vento áspero que sopra na Alemanha, Hellinger recebe no exterior títulos de doutor e outras honras. Esse alemão que toma amplas as almas - seja quem for que o procure - é apreciado e homenageado.
Ele vai continuar polarizando. Ele não aprecia discursos sem autoridade e, quando perguntado se algumas de suas teses provocariam menos gritaria e irritação se fossem expressas de uma outra maneira, responde com uma outra pergunta: “O que tem mais força?”
Este livro expressa muitas perguntas criticas que pairavam há muito tempo no ar. Bert Hellinger responde-as – como sempre – à sua maneira. O livro percorre etapas de sua vida e informa sobre seus insights mais importantes. Assim, surge o retrato de um homem que quer produzir algo - não na política, mas na alma.
Gabriele ten Hövel
Estava, portanto, em plena puberdade. Lembro-me de que, quando passei um longo tempo fora e voltei para casa, recebi os últimos tapas de meu pai, porque já não queria ser mandada. Qual foi a sua experiência, nesse particular?
Veja bem, estávamos já em guerra. Na verdade, não tivemos tempo para essas coisas. Meu pai sempre me dava apoio e incentivo quando eu queria alguma coisa, por exemplo, ir a concertos ou teatros. Não havia limitações. Ele trabalhava dez a doze horas por dia, como engenheiro numa fábrica de armamentos e voltava para casa tarde da noite.
Tínhamos uma vizinhança muito interessante. Ao nosso lado morava a família Würmeling. O pai tornou-se, mais tarde, Ministro da Família, no governo de Konrad Adenauer.
Disso eu me lembro bem. Éramos seis crianças em casa e a passagem de bonde com desconto para famílias numerosas se chamava “Würmeling”.
Seu filho mais velho era meu amigo. Em sua casa muitos jesuítas entravam e saíam constantemente. Com meus 15 ou 16 anos, eu me impressionava grandemente com o que lá se falava e discutia. Era um prazer ouvi-los. Tinham uma visão ampla e aberta para o mundo, bem diferente da visão dos nacional- socialistas.
Aqueles com quem tive contato ali tinham uma formação de alto nível, eram muito espirituais e disciplinados. Irradiavam uma simpatia que me fazia bem.
“Professor, eu nunca quis ser”
Era uma espécie de disciplina espiritual e intelectual, que não tinha nada a ver com a obediência?
Os jesuítas não são obedientes nesse sentido. Cada um é autônomo. Eles manifestavam uma espécie de liberdade de espírito e possibilidades de desenvolvimento que eu não conseguia encontrar em outras partes.
Eu tinha um grande respeito por esses jesuítas. Cheguei a pensar em tornar-me um deles, mas uma coisa me deteve: muitos jesuítas precisam tornar-se professores. Jamais desejei ser um professor. Ensinar alunos por 20 anos numa escola? Para isso eu não precisava ser sacerdote e ingressar numa ordem religiosa - foi o que pensei. Então preferi procurar os missionários de Mariannhill. Apesar disso, vim a tornar-me, mais tarde, professor na África do Sul. Assim é: aquilo de que fugimos nos alcança de repente.
Portanto, o seu desejo era tornar-se missionário e não professor, não ir para a escola, mas sair para o grande mundo?
Exato, algo assim. Naturalmente, eu não fazia nenhuma ideia do que significava ser missionário, num país distante. Idealizei uma imagem, misturada com um certo prazer pela aventura. Desde o internato eu já me movia nesse campo. Desde então, já fazia parte dele.
Assim, depois do internato, frequentei o ginásio em Kassel e filiei-me a um pequeno grupo do movimento católico da juventude. Esse movimento estava proibido, e éramos vigiados abertamente pela Gestapo.
Ao terminar a sétima e penúltima classe do ginásio, todos nós fomos incorporados, inicialmente na prestação de serviços e, depois, no exército.
Bem no início de minha prestação de serviços, um dos chefes do trabalho entrou na sala, aproximou-se de mim e me envolveu numa conversa. Era da Gestapo, mas eu ainda não sabia disso. Ele puxou uma conversa sobre Nietzsche e Hegel. Aos 17 anos, naturalmente eu não sabia muito a respeito, mas não deixava de saber alguma coisa. Ele disse: “Hegel teve uma antevisão do Estado atual”. Eu lhe respondi: “Hegel odiava o Estado”, e ele imediatamente retorquiu: “Você odeia o Estado”. De repente, tive a certeza de que estava sendo interrogado.
Um ano depois, quando eu estava no exército e estacionado na França, nossa classe recebeu pelo correio o certificado de conclusão do ginásio. O último ano nos fora abonado, porque todos estávamos servindo no exército. Entretanto, foi exigido um certificado da prestação de serviços e no meu certificado constou que eu era um “elemento potencialmente nocivo ao povo”. Naquela época, isso significava praticamente uma autorização de fuzilamento. Com isso, recusaram-me o diploma.
Quando minha mãe soube disso, procurou o diretor da escola e o interpelou energicamente: “Meu filho está servindo o exército, está arriscando sua vida e vocês lhe recusam o diploma?” O diretor ficou envergonhado e lhe entregou o diploma. Minha mãe lutara por mim como uma leoa.
Eu já conseguira distanciar-me do nacional-socialismo, pois tinha frequentado um internato cristão, e minha família também se movia num campo onde era possível distanciar-se. Minha mãe manteve-se absolutamente imune a qualquer sedução. Somente mais tarde pude perceber que enorme feito foi para ela ter conseguido manter-se fora disso. Para isso ela se valeu também de sua fé.
Também meu pai resistiu até o fim a todas as pressões para tornar-se membro do partido nazista. Nesse particular fui fortalecido por meus pais. Isso eu tenho em alta conta. Não foi uma realização pessoal minha, mas recebi essa força de minha mãe e de meu pai. Essa atitude, de tomar distância do entusiasmo geral e da pressão que ele exerce, continuou mais tarde, sob vários aspectos - inclusive na África do Sul. Isso se mostra também em minha vida atual. Mantenho minha distância e prezo minha liberdade. Com isso, movo-me num campo mais amplo.
Em sua concepção, movemo-nos num campo do qual não podemos escapar. Entretanto, falando de si, o senhor diz agora que existe uma liberdade pessoal – a capacidade de distanciar-se, de não ceder à sedução.
Apenas relatei o fato. Outra questão é a de saber se isso pode ser atribuído a uma liberdade. Vivencio como um presente o fato de que, em minha vida, eu sempre percebi, em determinado momento, que algo acabou, que passou. É uma compreensão. Então eu sentia a força para agir, mas isso não resulta de uma decisão baseada numa reflexão e na busca de um objetivo. Eu sigo um movimento interior. Nessas decisões essenciais não existe liberdade de escolha. Eu não podia agir de outro modo. Em caso contrário, teria desistido de mim.
Portanto, existem encruzilhadas, “decisões” – por exemplo, quando o senhor se separou de sua ordem religiosa e se tornou terapeuta?
É claro. A gente segue a própria destinação – mesmo quando isso exige coragem.
O senhor afirma que todos nós somos tomados a serviço. Agora diz também que posso decidir-me a seguir o chamado ou a permanecer onde estou. Isso parece contraditório.
Admito que é uma contradição. O que importa para mim é algo essencial na alma, o ponto onde sentimos a nossa essência, o cerne de nosso ser. Lá nos é prescrito onde existe progresso para nós e onde não existe. Quando sigo esse movimento não posso desviar-me. Nele ganho força e permaneço ligado a esse cerne íntimo.
Essa é uma reflexão filosófica que não pode ser demonstrada.
Isso não importa. Ela produz na alma determinados efeitos - é apenas isso que me interessa. Presumo que esse núcleo essencial é imortal. Meu núcleo essencial não termina com a morte, e meu desvio dele, também não. Algumas experiências com as constelações familiares sugerem essa pressuposição - por exemplo, que os mortos atuam sobre o presente porque não completaram alguma coisa e ainda não se encontraram com a sua essência.
Como o senhor percebe essa “destinação”?
Quando estou em sintonia, nada pode dar errado para mim. Nesse momento apodera-se de nós um movimento criativo que nos carrega. Não sou livre e, não obstante, nada mais quero, porque isso corresponde ao mais íntimo em mim. Esse é o caminho onde ocorrem os insights decisivos.
Essa não é uma dimensão mais mística? Jung diz: “Torna-te quem és.”
Vai nessa direção. Em todos os tempos falou-se dessa verdade interior. As crianças pequenas, por exemplo, estão desde o início conectadas com ela. Só mais tarde se desviam.
Portanto, é possível estar conectado ao próprio núcleo essencial, apesar dos envolvimentos sistêmicos?
Os envolvimentos são dissolvidos, até certo grau, pela compreensão. Não nos desprendemos do sistema quando nos livramos deles.
Porém?
Nessa guerra a gente estava fora de si. Fui envolvido em algo de que não podia escapar, com permanente risco de vida. Às vezes me espanta, ainda hoje, como pude sair daquela situação.
“Há um maldito alemão escondido no trem”
A fuga
Como conseguiu isso?
Eu estava com as forças armadas que combatiam na frente ocidental. Muitos companheiros ao meu lado morreram ou foram gravemente feridos. Eu mesmo muitas vezes escapei da morte por um triz - por exemplo, quando, por falta de alternativa, tivemos de atravessar um campo minado. Então, diante de Aachen, fui aprisionado pelos americanos e internado num acampamento em Charleroi, na Bélgica. Éramos 1600 presos e trabalhávamos dez horas por dia num gigantesco acampamento de suprimentos das tropas americanas. Por ordem do General Eisenhower, davam-nos, como castigo, apenas a metade das calorias diárias necessárias ao organismo nesse serviço pesado.
Descarregamos e carregamos um milhão de toneladas de suprimentos de víveres para as forças americanas. Como não recebíamos comida suficiente, procurávamos furtar o que fazia mais falta. Quem era pilhado nesses furtos era severamente punido: 30 dias de prisão especial. À noite se aglomeravam 50 homens num espaço mínimo, onde não se podia sentar nem deitar. Durante o dia trabalhavam 12 horas. A ração consistia em cinco crackers pela manhã, quatro ao meio-dia e cinco à noite - apenas nisso.
Quando fui apanhado pela primeira vez me livraram desse regime depois de cinco dias, por razões que desconheço. Nesse castigo ninguém aguentava mais de 30 dias. A maioria desfalecia depois de 10 ou de 14 dias. Eram medidas draconianas.
Certa vez, cinco companheiros tentaram escapar, pulando a cerca. Foram apanhados, simplesmente colocados contra a parede e fuzilados.
Mais tarde fui de novo pilhado furtando víveres. Dessa vez me puseram num barracão sem janelas onde só recebíamos pão e água. Era inverno e não tínhamos cobertores.
Quem fosse apanhado naquela época tinha de cavar um buraco, era açoitado, depois levado ao barracão e tinha a cabeça raspada. Também tive de fazer uma cova, com um soldado americano rondando em volta, mas não fui açoitado. Puseram-me no barracão, donde me tiraram depois de sete dias, sem me interrogarem. Também não tive a cabeça raspada. Achei isso estranho.
Que explicação o senhor encontrou?
Naquele tempo não encontrei explicação. Mais tarde, um amigo meu, que continuou no acampamento por longo tempo, depois de minha fuga, esclareceu-me a razão daquilo. O “americano”, meu vigilante, era na realidade um judeu alemão que naturalmente nos entendia, mas não deixava transparecer isso. Muitos prisioneiros o ridicularizavam, chamando-o de ‘bicha’ ou outros nomes. Eu lhes dizia: “Vocês não devem dizer isso”. Todos pensávamos que ele não entendia. Mas ele entendia tudo e por isso me protegeu mais tarde.
Quando saí do barracão, sem que me raspassem os cabelos, pensei: “Isto é um sinal. Para mim o cativeiro acabou.” Cinco dias depois eu estava em liberdade.
O senhor também tentou pular a cerca? Como conseguiu fugir?
Fiz com que me escondessem num trem de abastecimento que estava de partida para a Alemanha. Meus camaradas fizeram um esconderijo para mim num vagão, debaixo das caixas, para que não me achassem facilmente. Os vagões estavam totalmente carregados e naturalmente ninguém iria descarregar todo o trem pela suspeita de que estivesse lá o prisioneiro desaparecido. O trem ainda permaneceu um dia inteiro no acampamento. À noite, soldados americanos caminharam sobre os vagões, à minha procura. Eu os ouvi dizer: “There is a fucking german somewhere in the train”, mas não me encontraram. O trem levou seis dias para chegar à Alemanha. Perto de Würzburg abandonei o meu esconderijo e saltei do trem. Assim terminaram para mim a guerra e o cativeiro, onde eu passara um ano.
Situações semelhantes aconteceram outras vezes em minha vida: deixo-me conduzir pelo interior e tomo uma decisão porque sei: agora é o momento de dar esse passo.
Como o senhor percebe isso?
Por uma total segurança interna. Eu sei quando termina um capítulo da minha vida e não hesito nenhum instante.
“Essa decisão não foi livre”
A ordem religiosa
Naquela época o senhor era muito jovem, tinha 19 anos. Teve a mesma segurança na escolha de sua profissão?
Isso foi claro para mim muito cedo, desde os cinco ou seis anos. Eu queria ser sacerdote. Seis semanas depois que voltei da guerra, ingressei numa ordem religiosa.
Não houve ninguém que lhe disse: “Você precisa ser padre"?
Não, mas naturalmente eu vivia num campo religioso. Em retrospecto, vejo que essa decisão também teve a ver com o meu envolvimento familiar. Essa decisão, portanto, não foi livre. Foi predeterminada pelo meu sistema familiar.
Presumo que, olhando para o passado, muitas pessoas percebem que sua vida, tal como a viveram, também teve uma condução. Isso o senhor diz agora, aos 80 anos. Teve consciência disso na própria situação?
Não, a gente não o percebe. Num sistema familiar a percepção é limitada, é determinada através do campo. Quando olho em retrospecto, não deploro isso. Esses caminhos têm a sua importância. Eu não gostaria de ter perdido nada disso. Essas experiências me tornaram aquele que sou.
Portanto, o senhor ingressou na ordem religiosa. Como foi isso? Pouquíssima gente tem uma ideia do que seja o aprendizado de um monge.
Entrando na ordem religiosa, passei um ano no assim chamado noviciado. Esse primeiro ano é uma introdução à vida espiritual. A gente faz apenas meditação, orações em comum, leituras espirituais e ouve palestras. Nessa época eu me ocupei muito com a mística ocidental.
A meditação correspondia à nossa ideia de hoje ou era diferente?
Na meditação cristã a gente se ocupa com passagens bíblicas - sem mantras e sem oração ou, então, com uma parábola, uma história ou o relato da paixão de Jesus. Para mim foi também uma iniciação à história e aos exercícios da espiritualidade.
O que importa aí é a purificação interior. A gente se exercita em dedicar atenção total a alguma coisa. Era uma escola rigorosa.
Depois de algum tempo, abandonamos muitos desses exercícios. Por exemplo, já não fazemos orações. Simplesmente olhamos, tranquila e atentamente, para o vazio. Nisso consiste o recolhimento. Pode ser comparado à atitude básica da percepção fenomenológica.
Como era o seu dia?
Pela manhã havia meia hora de meditação em comum, depois missa, várias vezes ao dia as orações em coro. Nos intervalos meditávamos livremente. Dispus de um ano inteiro para isso, sem outras obrigações. Foi como um longo retiro - minha iniciação à espiritualidade. Passado esse ano, decidi- me pela ordem religiosa e fiz os assim chamados votos temporais, por três anos. São os votos de pobreza, castidade e obediência. Depois de três anos esses votos são renovados para toda vida.
Muda a forma da meditação?
Sim, é claro, a gente faz progressos.
Onde se revelam esses progressos?