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O ESTUDO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE: IMPLICAÇÕES E FATOS Amélia Cohn O ESTUDO DAS POLÍTICAS DE SADE na área da Saúde Coletiva ocu- pou sempre um lugar central, dadas as próprias características dessa área. Dentre elas, a de se constituir simultaneamente num campo de conhecimento e de práticas, envolvendo uma conjugação de perspecti- vas de análises que possibilite ao mesmo tempo avançar na produção do conhecimento e orientar as ações e a formulação das políticas de saúde, Em consequência, elas consistem numa vertente de estudos na área da saúde sempre muito marcada pelas questões e pelos desafios no que diz respeito à saúde que a própria sociedade impõe aos espe- cialistas do tema, acentuando assim uma característica da própria área da Saúde Coletiva, vale dizer, de conjugar, nem sempre em tempos e instâncias distintas, a teoria e a prática. No entanto, há que se ter claro que isso não implica, em nenhu ma hipótese, que os estudos realizados nessa área sejam estudos alea- tórios, marcados por distinias vontades individuais e/ou de determi- nados grupos sobre o que deva ser a organização da sociedade para enfrentar os seus próprios problemas de saúde de que padece, nem muito menos estudos que não devam obedecer, como qualquer cam- po do conhecimento científico exige, rigorosos procedimentos meto- dológicos e científicos, Em resumo, não significa que esses estudos e análises sejam fruto da vontade dos sujeitos que os produzem de de- monstrar a “sua” verdade, ou “a sua” resposta para aqueles desafios como “a resposta — e única — correta”, Desde já, para o que se chama a atenção é que as políticas de saúde consistem num campo de conhe- cimento da área das ciências humanas, e que como tal estabelece um outro padrão de relação entre 6 sujeito e o objeto do conhecimento que não aquele próprio das áreas das ciências biológicas e exatas; mas que, apesar disso, ao contrário do que o senso comum interpreta, não 2a 232 amélia cohn deixa de se caracterizar como um conhecimento igualmente científico, vale dizer, como a produção de um conhecimento que busca estabele- cer relações entre fenômenos criteriosamente coletados e selecionados. Dito isto, vale uma outra advertência: não busque o(a) leitor(a) neste texto respostas conclusivas — ou soluções — para os desafios que a saúde impõe para a nossa sociedade hoje. Ao contrário, o que buscaremos fazer é exatamente apontar a complexidade que o próprio objeto — políticas de saúde — envolve, o que ele traz consigo, e os desafios que o próprio esforço de buscar explicações para os rumos que elas tomaram e vêm tomando no Brasil enfrenta. Há, na área da Saúde Coletiva, basicamente duas grandes verten- tes de análise das políticas de saúde: uma que privilegia a organização dos serviços e do sistema de saúde nos distintos países e no Brasil em particular, e outra que enfatiza o impacto das sucessivas reformulações dos sistemas de saúde de cada país sobre o acesso dos indivíduos aos serviços de saúde e à satisfação de suas necessidades básicas de saúde. Neste caso, o que está no centro das preocupações dos pesquisadores e dos formuladores de políticas de saúde é sc essas reformulações e/ou reformas dos sistemas de saúde estão levando a um maior grau de equi- dade no acesso da população aos serviços de saúde. Em outras pala- vras, são estudos que analisam as políticas de saúde da perspectiva de uma de suas implicações básicas, qual seja, a deela se configurar efeti- vamente “como um direito de todos e um dever do Estado”, tal como reza a Constituição brasileira de 1988: Am. 196. A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à ré- dução do risco de doença é de outros agravos e ao acesso univer- sal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Estudar as políticas de saúde e a organização dos serviços de saúde que configuram as características do sistema de saúde dos distintos paí- ses não é uma tarefa pouco complexa. Ela envolve um conjunto de va- riáveis dinâmicas, com pesos relativos no conjunto do jogo de quebra- cabeça que caracteriza qualquer sociedade, que é muito mutante à depender das conjunturas econômicas, sociais, políticas e de governos, é do mesmo tempo apresentam uma lógica intrínseca que se faz necessá- ria descobrir qual vem a ser ela. Por exemplo, como se articulam os in- teresses das diferentes formas de organização é de obtenção de lucro das 234 amélia cohn neas distinguem três tipos principais de poder social, e o sistema social global se apresenta articulado em três subsistemas fundamentais: orga- nização das forças produtivas, organização do consenso e a organiza- ção da coação, cabendo sempre ao Estado o monopólio do uso da força. Dessa forma, cabe ao Estado, locus por excelência do exercício do poder, gerir a sociedade de forma que preserve a segurança dos cida- dãos, portanto a ordem, bem como as condições para que a sociedade se reproduza e se desenvolva de forma que sempre responda da ma- neira a mais adequada possível ao bem geral e ao interesse público. Em consequência, tem-se que, na esfera da política, o exercício sempre pre- sente é o da disputa, dentro de determinadas regras do jogo estabeleci- das, acordadas socialmente, e reconhecidas pela sociedade como legíti- mas, entre interesses particulares de distintos grupos sociais para que sejam estes contemplados pelas decisões políticas, e assim impostos à sociedade; e ainda, que nesse processo se configurem como interesses gerais para a sociedade como um todo, portanto não como o interesse de um determinado grupo específico, mas como um bem público, res- pondendo ao interesse de todos. É nessa arena da disputa política, por- tanto, que se dá a constante disputa entre interesses individuais e inte- resses de grupos, ou de determinados segmentos da sociedade, no geral pautados pela visão (correta do seu ponto de vista) de curto prazo, e Os interesses gerais, no geral pautados pela visão (inerente ao Estado) de médio e longo prazos. Neste ponto é interessante transcrever algumas linhas de Bobbio, do texto acima referido, quando afirma: “Conseguência direta da mo- nopolização da força no âmbito de um determinado território e relati- va a um determinado grupo social, assim hão de ser consideradas algu- mas características normalmente atribuídas ao poder político é que o diferenciam de toda e qualquer outra forma de poder: a exclusividade, a universalidade e a inclusividade”, Por exclusividade entendendo-se à não-permissão, pelos detentores do poder político, de formação de grupos armados independentes; por inclusividade se entendendo à possibilidade de intervir, de modo imperativo, em todas as esferas da atividade dos membros do grupo e encaminhá-la ao fim desejado, por meio de instrumentos de ordenamento jurídico; e por universalidade, entendendo-se a capacidade exclusiva dos detentores do poder políti- co de tomar decisões legítimas é verdadeiramente eficazes para toda a coletividade no que diz respeito à distribuição e destinação dos recur- sos econômicos e de toda natureza, como por exemplo, de equipa- mentos e profissionais de saúde. políticas de saúde: implicações e práticas 235 É necessário, assim, que se tenha em conta que quando se vai tratar das políticas de saúde, o que passa a ser o foco do estudo é o processo de tomada de decisões, por parte do Estado (leia-se, daqueles grupos que detêm o poder naquela conjuntura histórica que está sendo estudada, e constituindo os governos), ante uma série de possibilida- des de escolhas alternativas, que representam, cada uma delas, ganhos e perdas para distintos grupos sociais, tendo-se todavia por referência que ao Estado compete, sempre, orientar suas decisões para o bem comum da sociedade. Mas também há o outro lado da medalha: cada grupo social e/ou econômico pode, por exemplo, defender uma prioridade na área da saúde para que ela se traduza na principal política de um determinado governo; por outro lado, a maior parte da sociedade pode entender que uma outra medida seja prioritária na área da saúde, e não aquela. E ambas não encontram respaldo em estudos de caráter científico, epi- demiológicos por exemplo, para que se evidencie serem uma delas ou ambas efetivamente causas de um dos principais indicadores de mor- bimortalidade na sociedade, ou mesmo numa dada região, ou num determinado município. Evidencia-se aí um “choque” entre a dimen- são política — de representação de interesses sejam eles de caráter eco- nômico (prioridade n.º 1), sejam eles de entendimento de determi- nados grupos sociais do que vem a ser “sua” necessidade de saúde (prioridade n.º 2), e a dimensão técnica (prioridade n.º 3), representa- da por estudos epidemiológicos, da área da Saúde Coletiva e da área biológica propriamente dita. Vale a ressalva, aqui, que a técnica no geral se configura, nos tempos contemporâneos, como um valioso instru- mento no processo de tomada de decisão, mas não substitui — e nem deve fazê-lo, sob pena de sacrificar a democracia (isto é, a convivência harmônica — embora sempre tensa — de diferentes), a dimensão po- lítica propriamente dita, e que diz respeito exatamente à tomada de decisão, e portanto a escolhas entre alternativas disponíveis. Assim, se a grande tensão de fundo, na política, é a disputa entre interesses particulares e interesses gerais, que ocorre numa arena onde os poderes dos distintos grupos são altamente diferenciados quanto à sua capacidade de impor aos demais sua vontade, por outro lado, a outra grande tensão, nos tempos atuais, reside na disputa sempre ten- sa entre a dimensão técnica e a dimensão política nos processos de tomada de decisão. De fato, no casó do Brasil, vem sendo apontado um crescente distanciamento entre representados e seus representan- tes na esfera política graças a um avanço da presença da dimensão bu- políticas de saúde: implicações e práticas 237 financiamento advindo dos recursos diretos do orçamento do Estado, o que lhes atribui um caráter acentuadamente redistributivo, porque esses recursos provêm dos impostos que recaem sobre os ganhos dos indivíduos. Como nesses países o imposto é altamente progressivo (quem ganha mais paga relativamente mais do que quem ganha me- nos), os recursos alocados na área social adquirem uma capacidade de redistribuição máior, já que independentemente das condições socioe- conômicas dos distintos indivíduos, todos eles têm o mesmo acesso ao mesmo padrão de serviços de saúde, segundo suas necessidades. Por- tanto, o padrão do acesso dos indivíduos aos serviços de saúde, nesses países, independe da condição deles no mercado, isto é, independe de eles serem ricos ou pobres. Por outro lado, os serviços de saúde e de assistência médica são produzidos exclusivamente pelo Estado, confi- gurando-se como serviços públicos estatais, e quando há a presença de serviços de assistência médica privados, estes são absolutamente resi- duais, e estão sob as regras exclusivas do mercado, sem subsídio algum dos recursos estatais. O segundo modelo de sistema de proteção social é conhecido como meritocrático-corporativista, e o exemplo típico é o próprio caso brasi- leiro: a extensão dos direitos e dos serviços sociais, dentre eles a saúde, se dá a partir exatamente do oposto do modelo anterior — à partir da situação dos indivíduos no mercado de trabalho. É meritocrático por- que os indivíduos só têm acesso à assistência médica, aposentadorias e pensões se contribuem para o sistema de proteção social, ao contrário do caso anterior, em que a contribuição é diretamente para o orçamen- to da União, que redistribuirá os recursos pelos mais distintos setores sob responsabilidade do Estado, dentre eles a saúde. O mérito neste segundo modelo constitui portanto um tributo vinculado à contribui- ção individual de cada um, contribuição esta que por sua vez está vin- culada a uma situação dos incivítiuos no mercado de trabalho: o fato de serem trabalhadores formalmente contratados, e sindicalizados, o que lhes atribui o reconhecimento, pelo Estado, de estarem sob as leis que regulam a relação entre capital e trabalho (política trabalhista, po- lítica sindical e política previdenciária). Nesse modelo no geral o que se verifica é que ele acaba por gerar, ao contrário do modelo amerior, uma segmentação e uma diferencia- ção dos indivíduos no que diz respeito aos benefícios e serviços a que têm direito, é com isso interpõe barreiras para que construam uma iden- tidade comum na busca de melhores condições de acesso aos serviços sociais básicos, como por exemplo saúde e educação. No geral nas so- 238 amélia cohn ciedades em que prevalece esse modelo o que se verifica é a presença de um sistema dual de proteção social: um subsistema de serviços sociais para quem tem acesso a renda, e um outro subsistema para quem não tem acesso a nenhum tipo de renda, os pobres. No primeiro, no geral prevalece o Estado como provedor mas não necessariamente produtor de serviços sociais, e de saúde em particular; no segundo, prevalece o Es- tado como provedor e produtor de serviços sociais e de saúde, contando aqui como principal parceiro os serviços e as instituições filantrópicas. Há ainda um terceiro modelo, o residual, típico dos Estados Uni- dos da América. Nele o Estado se ocupa somente dos segmentos sociais mais pobres, que para Lerem acesso aos serviços e benefícios sociais têm de previamente comprovar sua condição de carente. O restante da so- ciedade vincula-se a serviços e benefícios cujo acesso é garantido pela contribuição diretamente às instituições privadas do mercado, sejam elas de seguro social, sejam elas de seguro de saúde. Os serviços sociais estão, assim, diretamente vinculados ao Estado que os produz somen- te para os segmentos da população comprovadamente pobre, Como se vê, nos três modelos a presença do Estado se faz sentir, e independentemente do tamanho dessa presença e do público alvo à que ela sé destina, sempre está imbuída de um caráter minimamente redistributivo; e há casos em que, concomitantemente, também assume um caráter de ação que acaba por reproduzir as desigualdades e diferen- as sociais, como no caso extremo do modelo residual. Daí por que se afirmar que, embora todo sistema de proteção social envolva um pacto de solidariedade social, uma vez que envolve distribuição direta ou indireta de recursos e riquezas da sociedade entre os diferentes seg- mentos sociais, esse pacto de solidariedade nem sempre é virtuoso: ele pode redistribuir de forma perversa os recursos, seja pelo padrão de fi- nanciamento das distintas políticas na área social, seja pelo acesso aos serviços sociais que o Estado produz ou provê para a sociedade. Assim é que as distintas sociedades, ao implementarem esses dis- tintos modelos, que nelas hoje em dia não se verificam de forma pura, mas combinados e misturados, com pesos maiores ou menores dos tra- ços que compõem cada um deles, apresentam uma específica relação entre as funções do Estado, da sociedade e do mercado na área social e da saúde, E de fato, nos dias atuais à grande discussão recai sobre quais devam ser o papel e as funções do Estado, o que cabe à sociedade e o que cabe ao mercado. E esse debate no geral se traduz numa equação “mais mercado e menos Estado”, "mais Estado e menos mercado”, a de- pender da escolha feita, mudando o papel da sociedade nessa equação. 240 amélia cohn lizem, e não mais o Estado como nos modelos acima referidos, pela sua própria saúde. O segundo deles consiste, também muito presente na discussão contemporânea, em atribuir à sociedade responsabilidades que antes eram do Estado, seja na gestão dos serviços de saúde (contratar para gestão de hospitais públicos estatais, por exemplo, organizações sociais de in- teresse público (Oscips) ou ONGs (organizações não-governamentais), ambas sem fins lucrativos, e entidades filantrópicas, e/ou fundações públicas, para prestação de serviços de saúde, e demais serviços na área social, introduzindo assim uma lógica no sistema de saúde que não é necessariamente pública, mas tampouco privada no sentido estrito do termo, já que esse tipo de instituições não busca diretamente o lucro. Mas isso terá suas repercussões, no caso brasileiro, como se verá adiante. Dessa forma, a depender do tamanho, da posição e das funções que cada sociedade em cada momento dado atribui ao Estado, ao mer- cado e à sociedade, estes terão seus papéis, funções e magnitude de ação articulados com aquela concepção central sobre qual o papel do Estado na área da saúde que aquela sociedade num determinado mo- mento histórico define como sendo a essencial, Daí porque, embora no caso brasileiro ao longo da nossa história se possa verificar uma certa constância na definição desse papel, o perfil de atuação do Estado na saúde mude em distintas conjunturas históricas e políticas ao longo do século XX, e início deste. Isso porque o Estado, como locus privile- giado da política, enquanto um conjunto de instituições que organi- zam as regras do jogo da representação, na esfera política, dos interes- ses e da capacidade do exercício de poder das distintas forças sociais que compõem a sociedade, nada mais faz do que, nas suas ações, refle- tir as distintas conjunturas da composição de forças sociais e políticas em cada momento histórico das sociedades, refletindo assim que tipo de pacto de solidariedade social (com maior ou menor grau de solida- riedade virtuosa) foram elas capazes de estabelecer. Daí por que se falar de políticas de saúde, e elas terem que ver com três das dimensões básicas da sociedade: o Estado, a sociedade e o mercado. POLÍTICAS DE SAÚDE: CIDADANIA E JUSTIÇA SOCIAL Quando a constituição brasileira afirma que “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”, ela está exatamente reconhecendo que todo indivíduo brasileiro, independentemente de raça, gênero, si- tuação socioeconômica e credo, tem igual direito com relação a todos políticas de saúde: implicações e práticas 241 às demais de atesso à satisfação de suas necessidades de saúde, enten- dida a responsabilidade da provisão desses serviços como exclusiva- mente do Estado. Isso significa duas coisas basilares: 1) que ao Estado cabe a responsabilidade por providenciar as condições e os recursos necessários que garantam a todo cidadão brasileiro o acesso à satisfa- ção de suas necessidades de saúde; 2) que como o direito à saúde é de tados, todos os indivíduos são reconhecidos e legitimados pela socie- dade na sua qualidade de cidadãos, isto é, como portadores de direitos e deveres iguais, independentemente das diferenças e desigualdades sociais que os distingam. De fato, os Estados nacionais modemos são caracterizados pelo reconhecimento, na área social, dos direitos sociais como direitos de cidadania, e como tais, enquanto direitos universais e equânimes de todos os indivíduos que vivem sob proteção daquele Estado, em que pese o fato de serem, no geral, sociedades desiguais, sobretudo aque- las abaixo da linha do Equador. O que caracteriza portanto a cidadania é seu caráter universal, equitativo, impessoal, e tendo como contrapar- tida uma série de deveres, que vão desde cumprir os deveres cívicos até prestar obediência às leis maiores que regem a sociedade. Mas aqui há que se fazer um reparo no que diz respeito à sociedade brasileira. Nos- sa tradição é a de sempre fazer prevalecer, na esfera societária e na rela- ção da sociedade com o Estado, a nossa condição de indivíduos não enquanto cidadãos, mas enquanto pessoas. O que isso significa? isso se traduz exatamente no oposto da cidadania: enquanto esta é a garan- tia de todos ao mesmo padrão de tratamento e ao acesso aos mesmos bens sociais básicos, independentemente dos atributos de cada um, portanto a garantia dos indivíduos aos direitos estabelecidos pela so- ciedade como universais, nosso costume tradicional é sempre que pos- sível fazer prevalecer nossos atributos pessoais — parentesco, amizade, compadrio, poder econômico, ocupação de posição estratégica em de- terminadas instituições, etc. — sobre os universais para com isso con- seguir privilégios no atendimento do que se busca, seja na rapidez do acesso, seja do benefício a ser alcançado. Isso se resume, em suma, nã famosa frase de que tanto gostamos e utilizamos em nossa vida cotídia- na: “sabe com quem está falando?”, Exatamente porque com ela estamos fazendo prevalecer a nossa condição pessoal (sempre que nos favore- ça, claro) sobre a nossa condição comum a todos os demais, isto é, a de ser um cidadão com direitos iguais aos demais. Por outro lado, nas sociedades capitalistas modernas as políticas sociais assumiram uma dupla função: a par regular a relação entre capi- políticas de saúde: implicações e práticas 243 si, No entanto, deve-se ressaltar que o parâmetro da justiça social defi- nido por cada sociedade (ou, seu inverso, qual o grau de desigualdade social que se pode suportar conviver, segundo cada sociedade) está em constante processo de redefinição. Redefinição esta que traduz a com- posição do jogo de forças políticas e sociais em distintas conjunturas econômicas — umas mais, outras menos favoráveis a gastos do Estado na área social —, e envolve sempre a disputa em torno da origem e do volume dos recursos que serão destinados a financiar a área social, e de em quais tipos de serviços serão feitos aqueles investimentos, e quais os segmentos sociais a serem priorizados Mas aqui vale novamente uma observação. Num primeiro mo- mento nos referimos aos recursos alocados na área social como “gasto na área social"; e num segundo como “investimentos na área social”, Esta é outra grande polêmica que ocorre nos tempos atuais sobre o lugar e as funções das políticas sociais e da saúde, e tem que ver com o que já se discutiu anteriormente: os papéis e funções do Estado, da sociedade e do mercado. Os mais conservadores, em favor de mais mer- cado e mais sociedade e menos Estado na provisão e produção da saú- de, entendem que os recursos destinados às políticas de saúde que não sejam para a população extremamente pobre e algumas medidas cole- tivas historicamente inerentes ao Estado se configuram como gastos; já os defensores da responsabilidade do Estado na garantia da provisão dos serviços de saúde que garantam o direito de todos à saúde como um dever do Estado, entendem esses recursos como investimentos na sociedade, é que como tal retommarão quando a população, tendo suas condições de saúde preservadas ou restabelecidas, volta a contribuir para a geração da riqueza social. Eis aí um elemento a mais para se pensar a questão da promoção da justiça social por meio de políticas sociais, pois ela não é algo que possa se equiparar à justiça das leis, embora esteja nesta calcada. Se de um lado se trata de fazer cumprir as leis (no caso brasileiro, o direito de todos à saúde como um dever do Estado), de outro se trata de se fazer cumprir na sociedade, por meio das ações do Estado, um parâmetro acordado de justiça social, que em última análise se define pelo acordo sobre “quem tem direito a quê, em quais circunstâncias”, O que procu- ramos mostrar aqui é exatamente que o direito a saúde, enquanto um direito dos cidadãos, não se presta a esse tipo de questionamento na sua dimensão mais ampla. No entanto, algo bem distinto é, garantido o direito nos preceitos constitucionais e legais, condição fundamental para que ele seja conquistado de fato, fazer com que toda a população 244 amélia cohn tenha acesso real aos serviços de saúde, e deles se aproprie de forma equitativa segundo suas necessidades. Mais uma vez, como se verá, não é esta a nossa tradição. Em termos teóricos, a promoção da justiça so- cial por meio das políticas sociais e de saúde geridas pelo Estado impli- ca que todos, como afirma um dos principais estudiosos do tema, van Paris. conquistem a mesma possibilidade de desenvolverem suas ca- pacidades individuais na sociedade, e dela possam participar, como afir- ma outro grande estudioso do tema, A. Sen, sem sentir vergonha. POLÍTICAS DE SAÚDE: A RELAÇÃO PÚBLICO/PRIVADO NO SETOR Como já visto, hã duas grandes vertentes de possibilidades de se concretizar o dever do Estado em prover para a sociedade o direito à saúde: o Estado ser provedor e produtor dos serviços de saúde; ou prover esse direito sem exercer o monopólio da produção desses servi- ços de saúde, permitindo que instituições do setor privado da saúde participem na oferta de serviços, mas sempre vinculadas à lógica da saúde “como um direito de todos e um dever do Estado”. Como se verá é esse mix público/privado na produção de serviços de saúde que prevalece no sistema de saúde brasileiro. E é exatamente como ocorrem essa articulação é essa divisão de trabalho entre os subsistemas público estatal e privado de serviços de saúde que vai compor o perfil do sistema nacional de saúde de cada país. Assim, por exemplo, se num determinado país o sistema público de serviços de saúde está voltado somente para a atenção primária, e o sistema privado de serviços de saúde para a atenção hospitalar, de maior complexidade, a tendência é que o perfil do seu sistema de saú- de, composto desses dois subsistemas, segmente a população entre Ticos e pobres: estes com acesso somente a um sistema público que lhe oferta serviços básicos de saúde, nas unidades básicas de saúde, e outro privado, voltado predominantemente aos que a ele têm acesso pelo mercado, isto é, por meio de pagamento direto ou por meio de paga- mento de seguros é planos de saúde. Daí a importância de se distinguir entre Estado provedor e Estado produtor de serviços de saúde, pois o Estado provedor de serviços dé saúde que acolhe a produção de serviços das instituições privadas, com ou-sem fins lucrativos, na oferta da garantia do acesso a eles para toda a população, necessariamente terá de imprimir à parte do setor privado da saúde que presta serviços para o Estado uma lógica de controle e de 246 amélia cohn suas ações, passa a segmentar a população segundo "quem tem direito a que tipo de assistência, em que condições, e com que participação no financiamento”, o que se verifica é que a saúde como um direito de ci- dadania, e portanto como um direito universal e equânime (relativo à equidade, que é distinta da igualdade, uma vez que contempla as dife- renças do padrão de necessidades de cada indivíduo e/ou segmento social visando exatamente a igualdade), vê-se atingida, exatamente por- que uns terão mais acesso a mais serviços que outros, seja por meio de prioridades que o Estado define, seja por meio de introdução de deter- minados mecanismos de financiamento pelo mercado; em poucas pala- vras, introdução de mecanismos denominados como de co-pagamen- to (o Estado, e portanto a sociedade, paga uma parte e o usuário individualmente se responsabiliza pelo pagamento do restante). E com isso, o próprio Estado passa então a diferenciar a sociedade, no que diz respeito ao acesso à saúde, segundo a capacidade de compra de servi- ços de saúde de seus membros, e portanto, segundo sua capacidade de consumo, transformando-se então a saúde num bem de consumo como, qualquer outro, O que vem se verificando nos países latino-americanos são refor- mas dos seus sistemas de saúde que aprofundam ou introduzem exa- tamente essa diferenciação dos diferentes segmentos da população no acesso aos serviços de saúde. Diante do processo de globalização da economia, em que as economias nacionais perdem autonomia ante a lógica global de acumulação de capital determinada por grandes con- glomerados econômicos transnacionais do capital financeiro, e suas consegiiências em impacto social negativo sobre a capacidade de as economias nacionais incorporarem os indivíduos a setores produtivos ou a fontes regulares de renda para sua sobrevivência (é o que se deno- mina de inclusão social), e diante das restrições econômicas aos orça- mentos dos Estados nacionais, o resultado na área social e da saúde é no geral que prevaleça 0 lema de que “já que o Estado não pode ofertar tudo para todos, ele deve se encarregar daqueles setores socialmente mais desfavorecidos, ou socialmente vulneráveis”, Isso vem significan- do, nas reformas da saúde na América Latina, a instituição de um sistema de saúde fragmentado, que segmenta a população em dois grandes gru- pos: os segmentos sem renda ou de baixa renda (miseráveis e pobres) para os quais o Estado provê e produz serviços de saúde básicos (são os denominados pacotes básicos de saúde), e aqueles não pobres ou com algum poder de compra, que têm acesso aos serviços de saúde públicos estatais e/ou privados através de co-pagamentos ou de seguros de saúde. políticas de saúde: implicações e práticas 247 Com isso, segmenta-se a população, fragmenta-se o sistema de saúde, e se consolidam modelos de assistência à saúde caracterizados por diferentes mixes de relação entre os subsistemas público e privado de saúde. Não é pois pouco complexo classificar os sistemas de saúde de ca- da país, como sendo “público”, “privado”, “hospitalocêntrico”, “foca- lizado”, “universal”, “integral”, e por aí vai. Isso porque a diversidade da sociedade contemporânea é ampla, como grande é a complexidade de sua conformação, em níveis de desigualdade social e econômica, de diferenças de gênero, de raça, de distâncias geracionais, etc. Com isso, à própria configuração do perfil saúde/doença que as sociedades con- temporâneas apresentam torna-se igualmente complexo, não se expres- sando mais, como há três ou quatro décadas atrás, como “doenças de rico ts. doenças de pobre”, o que muitas vezes acabava em propostas de políticas de saúde preventivas para as áreas pobres da população, de saneamento do meio ambiente dos grandes conglomerados urbanos, sendo a atenção de nível primário a que apresentava maior impacto potencial na queda dos indicadores de doença. Atualmente não basta a expansão da cobertura da atenção primária, se não se contemplam também as demais causas de morbimortalidade que prevalecem na so- ciedade, e que não permitem mais serem caracterizadas como umas correlatas à pobreza e outras à não-pobreza, embora no geral todas as causas vitimem mais os pobres que os não pobres. No Brasil, por exem- plo: enquanto ainda se apresenta uma estreita relação entre condições de vida precárias e maiores taxas de mortalidade infantil, a expansão da cobertura do parto hospitalar contribuiu significativamente para que elas se reduzissem, apesar da continuidade daquelas condições de vida precárias dos segmentos populacionais, Sabe-se que a violência vitima muito mais os jovens pobres que os ricos, por exemplo. No entanto, a mortalidade por causas externas é hoje uma das primeiras causas de mortalidade tanto em grandes como em pequenos centros urbanos. Dito de outra forma, não se pode mais, na atualidade, diante da com- plexidade da realidade social e, em consegiiência, da complexidade do perfil de morbimortalidade da população, pensar em políticas e pro- gramas de saúde para áreas pobres e outros para áreas ricas, pois esses perfis não diferem tão drasticamente hoje como no passado. Resta en- tão saber, no que diz respeito à saúde, o que fica como responsabilida- de do Estado, e o que fica como responsabilidade do mercado e da sociedade, Nessa equação de três elementos, é sua composição (o que estamos aqui chamando de mix) que vai definir se naquela sociedade políticas de saúde: implicações e práticas 249 sociais, sua responsabilidade deve recair somente sobre os absoluta- mente necessitados e incapazes de por conta própria satisfazer suas necessidades sociais básicas. É esta à polêmica entre focalização e universalização. E ela nada mais é do que a retomada, numa nova ver- são, da clássica polêmica que prevalecia até duas décadas atrás entre políticas voltadas para os direitos sociais e as voltadas para a assi stência social; aqueias respondendo a direitos € estas respondendo, por no ge- ral apresentarem forte traço caritativo, à filantropia mesmo quando se tratava de serviços públicos estatais, e não de entidades filantrópicas, Nó entanto, embora essa polêmica ainda persista, muito mais como disputa ideológica do que como fundamento, ela de certa forma deixa de fazer sentido hoje em dia. Isso por pelo menos duas razões básicas não se trata mais tão-somente de, por meio das políticas sociais, suprir os indivíduos, cidadãos portadores de direitos, da satisfação de stas necessidades básicas, mas sim de promover formas de inclusão social desses indivíduos. Noutros termos, o desafio que qualquer política social hoje enfrenta, e as políticas de saúde inclusive, é de como contri- buir para que grandes contingentes de nossa sociedade, excluidos do mercado de trabalho e do acesso a fontes regulares de renda para sua subsistência, sejam incluídos e participem da vida social. Não se trata mais, portanio, de se pensar políticas residuais para segmentos pobres da população. Primeiro, porque estes segmentos atingem, no caso brasileiro, um terço de nossa gente; segundo, porque neste caso, felizmente, o Brasil anda na contramão da história dos de- mais países latino-americanos: desde 1988 a saúde é um direito de to- dos e um dever do Estado, garantido e reconhecido pela constituição brasileira. Daí porque, sobretudo no nosso caso, não ter sentido racio- cinar como alternativas opostas e excludentes a universalização e a fo- calização. Bem certo que as agências financeiras internacionais multila- terais defendem os preceitos neoliberais clássicos do Estado minimo tanto na área econômica como — é sobretudo — na área social, deven- do este se responsabilizar tão-somente por pacotes básicos de serviços para a população extremamente pobre, cabendo aos restantes segmen- tos da sociedade co-participação no custeio dos serviços que conso- mem por meio de co-pagamentos, Mas se de fato é isso que vem acontecendo nas reformas da área da saúde de muitos dos países latino-americanos — um pacote básico de serviços para Os contingentes extremamente pobres da população e seguros populares para os que podem co-financiar o constimo dos ser- viços de saúde, no Brasil isso não vem ocorrendo, em que pese o fato 250 amélia cohn de um dos principais programas de saúde hoje em desenvolvimento ser O Programa Saúde da Família, que consiste numa proposta de ex- tensão do acesso da população aos serviços primários de saúde, mas respeitando-se os princípios da universalidade, integralidade e equida- de na atenção à saúde. POLÍTICAS DE SAÚDE: O CASO DO BRASIL Asprincipais características do sistema de saúde brasileiro de hoje têm raízes ainda no início do século passado, e são fruto de uma poli- tica do Estado. Não de um Estado nacional, uma vez que este se cons- tituiu no Brasil somente após os anos 1930, nem de uma política pro- priamente de saúde, mas da ação de um poder central, exercido pelas oligarquias regionais, que instituiu normas de regulação social da rela- ção entre capital e trabalho, isso numa época em que a sociedade e a economia brasileira estavam passando por profundas mudanças. À ori- gem das atuais características que hoje representam sérios desafios para o cumprimento dos preceitos constitucionais de 1988 nó que diz res- peito à saúde está na legislação previdenciária, que data de 1923, quan- do são criadas as Caixas de Aposentadorias e Pensões. A partir de 1930 elas se transformam em Institutos, agora não mais organizados por empresas, como era o caso das Caixas, mas por segmentos dos assalaria- dos segundo o setor econômico em que estavam inseridos. Em ambos os casos, os benefícios a que os trabalhadores tinham direito correspondiam a prestações em dinheiro (aposentadoria e pen- são) e a assistência médica; e o acesso a eles era vinculado, até 1930, somente à contribuição compulsória do empregado e do empregador, complementada com uma parte de financiamento do Estado, que para tanto criava novos impostos específicas; e a partir de 1930, acrescenta: se o vínculo com a legislação trabalhista, que significava a inserção dó twabalhador no mercado formal de trabalho. A assistência médica, por- tanto, era uma assistência previdenciária, para os segmentos assalariados urbanos da população brasileira, cabendo ao Estado, na área da saúde, as ações tidas então como clássicas da Saúde Pública, de sancamento (no sentido amplo do termo) do ambiente: vacinação, isolamento dos portadores de doenças contagiosas ou “perigosas” para a sociedade. tomo por exemplo era à doença mental entendida à época. Quanto aos pobres, a estes cabiam os hospitais filantrópicos, as santas casas, ao passo que às classes dominantes estavam reservados os profissionais médicos formados no exterior, e 0 acesso à tratamentos no exterior.