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Análise Psicanalítica dos Sonhos: A Importância dos Pensamentos Oníricos Latentes, Notas de estudo de Psicologia

Este texto discute a importância da análise dos sonhos na psicanálise e como os pensamentos latentes desempenham um papel crucial na formação de sonhos. O autor relata um caso de interpretação de um sonho e destaca a necessidade de distinguir entre os pensamentos oníricos e o próprio sonho.

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 24/04/2013

Selecao2010
Selecao2010 🇧🇷

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Adquirimos hoje a convicção de que há algumas idéias latentes que não penetram na consciência, por mais
fortes que possam se haver tornado. Assim, chamamos as idéias latentes do primeiro tipo de pré-conscientes,
enquanto reservamos o termo inconsciente (propriamente dito) para o último tipo que viemos a estudar nas
neuroses. O termo inconsciente, que foi empregado antes no sentido puramente descritivo, vem agora a
implicar algo mais. Designa não apenas as idéias latentes em geral, mas especialmente idéias com certo
caráter dinâmico, idéias que se mantêm à parte da consciência, apesar de sua intensidade e atividade.
Antes de prosseguir com minha exposição, referir-me-ei a duas objeções que têm probabilidades de
serem levantadas neste ponto. A primeira delas pode ser assim enunciada: ao invés de concordar com a
hipótese de idéias inconscientes, das quais nada sabemos, é melhor presumir que a consciência pode ser
dividida, de modo que certas idéias ou outros atos psíquicos possam constituir uma consciência separada, que
se tornou desligada e separada da massa de atividade psíquica consciente. Casos patológicos famosos, como
o do Dr. Azam [A referência é ao caso de Félida X, notável exemplo de personalidade alternada ou dupla,
provavelmente o primeiro deste tipo a ser investigado e registrado minuciosamente. O caso foi descrito em
várias publicações por E. Azam, de Bordeaux. Seu primeiro relatório apareceu na Revue Scientifique, em 26 de
maio de 1876, e foi seguido, algumas semanas depois, por um artigo dos Annales médico-psychologiques. (Ver
Azam, 1876, e seu último livro, 1887.)], parecem contribuir muito para demonstrar que a divisão da consciência
não constitui imaginação fantasista.
Aventuro-me a alegar contra essa teoria que ela é uma suposição gratuita, baseada no mau uso da
palavra ‘consciente’. Não temos o direito de estender o significado desta palavra a ponto de fazê-la incluir uma
consciência da qual seu próprio possuidor não se acha ciente. Se os filósofos encontram dificuldade em aceitar
a existência de idéias inconscientes, a existência de uma consciência inconsciente parece-me ainda mais
objetável. Os casos descritos como divisão (splitting) da consciência, como o do Dr. Azam, poderiam de
preferência ser denominados de deslocamento da consciência - essa função ou o que quer que seja - que
oscila entre dois complexos psíquicos diferentes que se tornam conscientes e inconscientes alternadamente.
A outra objeção que poderia ser levantada seria que aplicamos à psicologia normal conclusões que são
tiradas principalmente do estudo de estados patológicos. Estamos capacitados a respondê-la por outro fato,
cujo conhecimento devemos à psicanálise. De certas deficiências de função da mais freqüente ocorrência entre
pessoas sadias, tais como por exemplo, lapsus linguae, erros de memória e de fala, esquecimento de nomes
etc., pode-se facilmente demonstrar que dependem da ação de fortes idéias inconscientes, da mesma maneira
que os sintomas neuróticos. Apresentaremos outro argumento ainda mais convincente num estádio posterior
deste estudo.
Pela diferenciação de idéias pré-conscientes e inconscientes, somos levados a abandonar o campo da
classificação e a formar uma opinião sobre as relações funcionais e dinâmicas na ação psíquica. Encontramos
uma atividade pré-consciente que passa para a consciência sem dificuldade e uma atividade inconsciente que
assim permanece e parece se achar isolada da consciência.
Ora, não sabemos se estes dois modos de atividade psíquica são idênticos ou essencialmente
divergentes desde o início, mas podemos perguntar por que devem tornar-se diferentes no decorrer da ação
psíquica. A esta última questão, a psicanálise fornece uma resposta clara e firme. Não é, de modo algum,
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Adquirimos hoje a convicção de que há algumas idéias latentes que não penetram na consciência, por mais fortes que possam se haver tornado. Assim, chamamos as idéias latentes do primeiro tipo de pré-conscientes , enquanto reservamos o termo inconsciente (propriamente dito) para o último tipo que viemos a estudar nas neuroses. O termo inconsciente , que foi empregado antes no sentido puramente descritivo, vem agora a implicar algo mais. Designa não apenas as idéias latentes em geral, mas especialmente idéias com certo caráter dinâmico, idéias que se mantêm à parte da consciência, apesar de sua intensidade e atividade. Antes de prosseguir com minha exposição, referir-me-ei a duas objeções que têm probabilidades de serem levantadas neste ponto. A primeira delas pode ser assim enunciada: ao invés de concordar com a hipótese de idéias inconscientes, das quais nada sabemos, é melhor presumir que a consciência pode ser dividida, de modo que certas idéias ou outros atos psíquicos possam constituir uma consciência separada, que se tornou desligada e separada da massa de atividade psíquica consciente. Casos patológicos famosos, como o do Dr. Azam [A referência é ao caso de Félida X, notável exemplo de personalidade alternada ou dupla, provavelmente o primeiro deste tipo a ser investigado e registrado minuciosamente. O caso foi descrito em várias publicações por E. Azam, de Bordeaux. Seu primeiro relatório apareceu na Revue Scientifique, em 26 de maio de 1876, e foi seguido, algumas semanas depois, por um artigo dos Annales médico-psychologiques. (Ver Azam, 1876, e seu último livro, 1887.)], parecem contribuir muito para demonstrar que a divisão da consciência não constitui imaginação fantasista. Aventuro-me a alegar contra essa teoria que ela é uma suposição gratuita, baseada no mau uso da palavra ‘consciente’. Não temos o direito de estender o significado desta palavra a ponto de fazê-la incluir uma consciência da qual seu próprio possuidor não se acha ciente. Se os filósofos encontram dificuldade em aceitar a existência de idéias inconscientes, a existência de uma consciência inconsciente parece-me ainda mais objetável. Os casos descritos como divisão ( splitting ) da consciência, como o do Dr. Azam, poderiam de preferência ser denominados de deslocamento da consciência - essa função ou o que quer que seja - que oscila entre dois complexos psíquicos diferentes que se tornam conscientes e inconscientes alternadamente. A outra objeção que poderia ser levantada seria que aplicamos à psicologia normal conclusões que são tiradas principalmente do estudo de estados patológicos. Estamos capacitados a respondê-la por outro fato, cujo conhecimento devemos à psicanálise. De certas deficiências de função da mais freqüente ocorrência entre pessoas sadias, tais como por exemplo, lapsus linguae , erros de memória e de fala, esquecimento de nomes etc., pode-se facilmente demonstrar que dependem da ação de fortes idéias inconscientes, da mesma maneira que os sintomas neuróticos. Apresentaremos outro argumento ainda mais convincente num estádio posterior deste estudo. Pela diferenciação de idéias pré-conscientes e inconscientes, somos levados a abandonar o campo da classificação e a formar uma opinião sobre as relações funcionais e dinâmicas na ação psíquica. Encontramos uma atividade pré-consciente que passa para a consciência sem dificuldade e uma atividade inconsciente que assim permanece e parece se achar isolada da consciência. Ora, não sabemos se estes dois modos de atividade psíquica são idênticos ou essencialmente divergentes desde o início, mas podemos perguntar por que devem tornar-se diferentes no decorrer da ação psíquica. A esta última questão, a psicanálise fornece uma resposta clara e firme. Não é, de modo algum,

impossível ao produto da atividade inconsciente penetrar na consciência, mas para esta tarefa é necessária uma certa quantidade de esforço. Quando tentamos realizá-la em nós próprios, damo-nos conta de uma sensação distinta de repulsão , que tem de ser dominada, e, quando a produzimos num paciente, obtemos os mais indiscutíveis sinais do que chamamos de sua resistência a ela. Assim, aprendemos que a idéia inconsciente acha-se excluída da consciência por forças vivas que se opõem à sua recepção, embora não objetem a outras idéias, as pré-conscientes. A psicanálise não deixa campo para dúvida de que a repulsão das idéias inconscientes só é provocada pelas tendências incluídas na essência destas. A teoria mais provável que pode ser formulada, neste estádio de nosso conhecimento, é a seguinte. A inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividade psíquica; todo ato psíquico começa como um ato inconsciente e pode permanecer assim ou continuar a evoluir para a consciência, segundo encontra resistência ou não. A distinção entre atividade pré-consciente e inconsciente não é primária, mas vem a ser estabelecida após a repulsão ter surgido. Somente então a diferença entre idéias pré-conscientes, que podem aparecer na consciência e reaparecer a qualquer momento, e idéias inconscientes, que não podem fazê-lo, adquire um valor tanto teórico quanto prático. Uma analogia grosseira, mas não inadequada, a esta suposta relação da atividade consciente com a inconsciente poderia ser traçada com o campo da fotografia comum: a primeira etapa da fotografia é o ‘negativo’; toda imagem fotográfica tem de passar pelo processo negativo e alguns desses negativos, que se saíram bem no exame, são admitidos ao ‘processo positivo’, que termina pelo retrato. Mas a distinção entre atividade pré-consciente e inconsciente e o reconhecimento da barreira que as mantêm apartadas não são o último ou o mais importante resultado da investigação psicanalítica da vida psíquica. Existe um produto psíquico encostando nas pessoas mais normais que, contudo, apresenta analogia muito marcante com as mais violentas produções da insanidade e não foi mais inteligível aos filósofos que a própria insanidade. Refiro-me aos sonhos. A psicanálise se fundamenta na análise dos sonhos e a interpretação deles constitui a obra mais completa que a jovem ciência realizou até o presente. Um dos mais comuns de formação onírica pode ser descrito como segue: uma seqüência de pensamentos foi despertada pelo funcionamento da mente durante o dia e reteve um pouco de sua atividade, fugindo à inibição geral de interesses que introduz o sono e constitui a preparação psíquica para o dormir. Durante a noite, a seqüência de pensamentos consegue encontrar vinculações com uma das tendências inconscientes presentes desde a infância na mente do que sonha, mas ordinariamente reprimida e excluída de sua vida consciente. Com a força tomada de empréstimo a esta ajuda inconsciente, os pensamentos, resíduo do trabalho do dia, tornam-se então ativos novamente e surgem na consciência sob a forma de sonho. Ora, três coisas aconteceram: (1) Os pensamentos sofreram uma mudança, um disfarce e uma deformação, que representam a parte do ajudante inconsciente. (2) Os pensamentos ocuparam a consciência numa ocasião em que não o deveriam. (3) Uma parte do inconsciente, que doutra maneira não teria podido fazê-lo, surgiu na consciência. Aprendemos a arte de descobrir os ‘pensamentos residuais’, os pensamentos latentes dos sonhos , e, comparando-os com o sonho aparente, pudemos formar opinião sobre as modificações que experimentaram e a maneira pela qual estas foram ocasionadas. Os pensamentos latentes do sonho não diferem em nenhum aspecto dos produtos de nossa atividade

( a ) EDIÇÕES ALEMÃS: 1913 Int. Z. Psychoanal ., 1 (1), 73-8. 1918 S. K. S. N ., 4 177-188. (1922, 2ª ed.) 1925 G. S ., 3 267-77. 1925 Traumlehre , 11-21. 1931 Sexualtheorie und Traumlehre , 316-26. 1946 G. W., 10, 12-22.

( b ) TRADUÇÃO INGLESA: ‘A Dream which Bore Testimony’ 1924 C. P ., 2, 133-43 (Trad. de E. Glover.)

A presente tradução inglesa baseia-se na publicada em 1924.

Em seu primeiro aparecimento na Zeitschrift (no começo de 1913), este artigo foi o primeiro de vários, escritos por diversos autores, incluídos sob o título geral ‘Beitrãge zur Traumdeutung’ (‘Contribuições à Intepretação de Sonhos’). O trabalho apresenta a peculiaridade de ser uma análise de sonhos, de segunda mão. Independente disto, é digno de nota por contar uma descrição excepcionalmente clara do papel desempenhado pelos pensamentos oníricos latentes na formação de sonhos e por sua insistência na necessidade de manter em mente a distinção entre os pensamentos oníricos e o próprio sonho.

UM SONHO PROBATÓRIO

Uma senhora que padecia da mania dubitativa e cerimoniais obsessivos insistia em que suas enfermeiras nunca a deixassem fora de suas vistas por um só momento: doutra maneira, ela começaria a ruminar sobre ações proibidas que poderia ter cometido enquanto não se achava sendo observada. Certa noite, enquanto repousava no sofá, pensou que vira a enfermeira de serviço adormecer. Ela gritou: ‘Está me vendo?’ A enfermeira deu um pulo e respondeu: ‘Naturalmente que estou.’ Isto forneceu à paciente motivo para nova dúvida e, após certo tempo, repetiu a pergunta, que a enfermeira respondeu com protestos renovados; exatamente nesse momento, outra assistente chegou, trazendo a ceia da paciente. Este incidente ocorreu numa sexta-feira à noite. Na manhã seguinte, a enfermeira relatou um sonho que teve o efeito de desfazer as dúvidas da paciente. SONHO - Alguém lhe havia confiado uma criança. A mãe da criança saíra de casa e ela [a que sonhou] perdera-a. Enquanto andava, indagava das pessoas na rua se haviam visto a criança. Depois, chegou a uma grande extensão de água e cruzou uma estreita ponte para pedestres. (Houve um adendo: Subitamente apareceu-lhe à frente, sobre a ponte, como uma ‘fata Morgana’, a figura de outra enfermeira. ) Então, achou-se num lugar familiar, onde econtrou uma mulher que conhecera menina e que na época era vendedora numa loja

de víveres e depois se casara. Perguntou à mulher, que estava parada em frente a sua porta: ‘Você viu a criança?’ A mulher não prestou atenção à pergunta, mas informou-a de que se achava divorciada do marido, acresentando que tampouco o casamento é sempre feliz. Ela acordou sentindo-se tranqüilizada e pensou que a criança apareceria perfeitamente bem na casa de um vizinho. ANÁLISE - A paciente presumiu que este sonho se referia ao cochilo que a enfermeira havia negado. A partir de informações adicionais voluntariamente prestadas pela última, pôde interpretar o sonho de maneira que, embora incompleta sob certos aspectos, foi suficiente para todos os fins práticos. Eu próprio somente ouvi o relato da senhora e não entrevistei a enfermeira. Citarei primeiramente a interpretação da paciente e depois suplementá-la-ei com o que nossa compreensão geral das leis que governam a formação onírica nos permitem acrescentar.

’A enfermeira contou-me que a criança do sonho fazia-a lembrar-se de um caso cujo cuidado lhe dera a mais viva satisfação. Foi o de uma criança incapaz de enxergar devido a uma inflamação dos olhos (blenorréia). A mãe, contudo, não abandonava a casa: ajudava a cuidar da criança. Por outro lado, recordo-me também que quando meu marido, que tem alta consideração por esta enfermeira, partiu, deixou-me aos seus cuidados e ela prometeu cuidar de mim como cuidaria de uma criança.’ Além disso, sabemos pela análise da paciente que, ao insistir em nunca ser deixada fora da vista, ela se recolocara na posição de ser outra vez criança. ‘Ter perdido a criança’, continuou a paciente, ‘significou que ela não me vira; perdera-me de vista. Isto constituiu sua admissão de que realmente adormecera por certo tempo e não me contara a verdade posteriormente.’ Ignorava o significado do pequeno fragmento de sonho em que a enfermeira indagava das pessoas na rua se haviam visto a criança; por outro lado, foi capaz de elucidar os pormenores posteriores do sonho manifesto. ‘A grande extensão de água fez a enfermeira pensar no Reno; acrescentou, contudo, que era muito maior que o Reno. Então lembrou-se de que na noite anterior eu lhe lera a história de Jonas e a baleia, e lhe contara que, certa vez, eu própria vira uma baleia no Canal da Mancha. Imagino que a grande extensão de água fosse o mar e constituísse uma alusão à história de Jonas. ‘Acho também que a estreita ponte para pedestres proveio da mesma história, que era divertidamente escrita em dialeto. A anedota relata como um instrutor religioso descreveu a seus alunos as maravilhosas aventuras de Jonas, após o que um menino objetou que não podia ser verdade, visto que o próprio professor lhes disssera antes que as baleias só podiam engolir criaturas minúsculas, devido à estreiteza de seus esôfagos. O professor escapou da dificuldade dizendo que Jonas era judeu e que os judeus se enfiavam em qualquer lugar. Minha enfermeira é muito piedosa mas inclinada a dúvidas religiosas, e censurei-me no caso de a história que lhe lera poder tê-las suscitado. ‘Nessa ponte estreita, viu agora o aparecimento de outra enfermeira, a quem conhecia. Contou-me a história desta última: havia-se jogado no Reno por ter sido dispensada de um caso, devido a algo de que fora culpada. Ela própria temera, portanto, ser dispensada por haver adormecido. Ademais, no dia seguinte ao

seus cuidados. Enquanto, para a senhora que o relatou a mim, este sonho tinha significação prática, para nós ele estimula o interesse teórico em duas direções. É verdade que terminou por uma consolação, mas, em geral, representou uma admissão importante com referência à relação da enfermeira com sua paciente. Como acontece que um sonho, que afinal de contas deve servir de realização de um desejo, possa tomar o lugar de uma admissão que nem mesmo foi de qualquer vantagem para a que sonhou? Devemos realmente admitir que, além de sonhos de realização de desejo (e de ansiedade), existem também sonhos de admissão, assim como de advertência, reflexão, adaptação etc.? Devo confessar que ainda não compreendo muito bem por que a posição que tomei contra qualquer tentação desse tipo, em A Interpretação de Sonhos , causou desconfianças nas mentes de tantos psicanalistas, entre eles alguns bem conhecidos. Parece-me que a diferenciação entre sonhos de realização de desejo, admissão, advertência, adaptação etc. não tem muito mais sentido que a diferenciação, necessariamente aceita, dos especialistas médicos em ginecologistas, pediatras e dentistas. Permitam-me recapitular aqui, tão sucintamente quanto possível, o que disse sobre este assunto em A Interpretação de Sonhos. Os chamados ‘resíduos diurnos’ podem atuar como perturbadores do sonho e construtores de sonhos; eles são processos de pensamento afetivamente catexizados do dia do sonho, que resistiram ao rebaixamento geral [de energia] pelo sono. Estes resíduos diurnos são descobertos por remontarem o sonho manifesto aos pensamentos oníricos latentes; constituem porções do último e acham-se assim entre as atividades do estado de vigília - conscientes ou inconscientes - que conseguiram persistir no período de sono. Em consonância com a multiplicidade de processos de pensamento no consciente e pré-consciente, estes resíduos diurnos têm os mais numerosos e diversos significados: eles podem ser desejos ou temores que não foram resolvidos, ou intenções, reflexões, advertências, tentativas de adaptação a tarefas atuais etc. Até este ponto, a classificação de sonhos que se acha em consideração parece ser justificada pelo conteúdo que é revelado pela interpretação. Estes resíduos do dia, contudo, não são o próprio sonho: falta-lhes o elemento essencial principal de um sonho. De si próprios não são capazes de construir um sonho. São, estritamente falando, apenas o material psíquico para a elaboração onírica, exatamente como os estímulos sensórios e somáticos, quer acidentais quer produzidos sob condições experimentais, constituem o material somático para a elaboração onírica. Conferir-lhes o papel principal na construção de sonhos é simplesmente repetir, num ponto novo, o erro pré-analítico que explicava os sonhos atribuindo-os à má digestão ou à pressão sobre a pele. Os erros científicos, em verdade, têm vida tenaz, e mesmo quando refutados acham-se prontos a insinuar-se novamente, sob novos disfarces.

O estado atual de nosso conhecimento leva-nos a concluir que o fator essencial na construção de sonhos é um desejo inconsciente - geralmente um desejo infantil, agora reprimido - que pode vir a se expressar nesse material somático ou psíquico (e também nos resíduos diurnos, portanto) e pode abastecer estes com uma força que os capacita a forçar seu caminho em direção à consciência, mesmo durante a suspensão do pensamento, à noite. O sonho é, em todos os casos, uma realização deste desejo inconsciente, seja o que for que possa conter mais - advertência, reflexão, admissão, ou qualquer outra parte do rico conteúdo do estado de

vigília pré-consciente que continuou, sem ser tratado, noite adentro. É este desejo inconsciente que dá à elaboração onírica seu caráter peculiar, como revisão inconsciente do material pré-consciente. Um psicanalista pode caracterizar como sonhos apenas os produtos da elaboração onírica: apesar do fato de só se chegar aos pensamentos oníricos latentes a partir da interpretação do sonho, ele não pode considerá-los como parte deste, mas apenas como parte da reflexão pré-consciente. (A revisão secundária pela instância consciente é aqui considerada como parte da elaboração onírica. Mesmo que devêssemos separá-la, isto não envolveria nenhuma alteração em nossa concepção. Teríamos então de dizer: os sonhos, no sentido analítico, compreendem a elaboração onírica propriamente dita, juntamente com a revisão secundária de seus produtos.) A conclusão a ser tirada destas considerações é que não se pode colocar o caráter realizador de desejos dos sonhos no mesmo nível que seu caráter de advertência, admissão, tentativa de solução etc., sem negar o conceito de uma dimensão psíquica de profundidade, o que equivale a dizer, sem negar o ponto de vista da psicanálise. Retornemos agora ao sonho da enfermeira, a fim de demonstrar a qualidade de profundidade na realização de desejo nele contida. Já sabemos que a interpretação que a senhora deu ao sonho não era, de modo algum, completa; havia partes dele a que ela foi incapaz de fazer justiça. Ademais, ela sofria de neurose obsessiva, condição que, pelo que observei, torna consideravelmente mais difícil compreender os símbolos oníricos, tal como a demência precoce torna-o mais fácil. Não obstante, nosso conhecimento do simbolismo onírico capacita-nos a compreender partes não interpretadas deste sonho e descobrir uma significação mais profunda por trás das interpretações já fornecidas. Não podemos deixar de notar que parte do material empregado pela enfermeira provém do complexo de dar a luz, de ter filhos. A extensão de água (o Reno, o Canal onde a baleia foi vista) era certamente a água da qual as crianças provém. E depois, também, ela veio à água em busca de uma criança. A lenda de Jonas, fator de determinação dessa água, a pergunta de saber como Jonas (a criança) podia passar através de passagem tão estreita pertencem ao mesmo complexo. E a enfermeira que se atirou no Reno por mortificação encontrou uma consolação simbólico-sexual para seu desespero de vida na modalidade de sua morte - entrando na água. A estreita ponte para pedestres sobre a qual a aparição a encontrou foi, com toda probabilidade, também um símbolo genital, embora tenha de admitir que aqui nos falta ainda um conhecimento mais preciso. O desejo ‘quero ter um filho’ parece, portanto, ter sido o construtor onírico a partir do inconsciente; nenhum outro seria mais bem calculado para consolar a enfermeira pelo estado aflitivo das coisas na vida real. ‘Serei dispensada: perderei a criança que está aos meus cuidados. Que importa? Em vez disso, arranjarei uma criança real, minha própria.’ A parte não interpretada do sonho, na qual ela pergunta a todos na rua sobre a criança, pode talvez caber aqui; a interpretação então seria: ‘E mesmo que tenha de me oferecer nas ruas, sei como arranjar um filho para mim.’ Um laivo de desafio na que sonhou, até aqui disfarçado, se revela subitamente neste ponto. Sua admissão encaixa-se aqui pela primeira vez: ‘Fechei os olhos e comprometi minha reputação profissional de pessoa conscienciosa; agora, vou perder meu lugar. Serei tão tola de afogar-me, como a enfermeira X? Não: abandonarei a enfermagem completamente e me casarei; serei uma mulher e terei um filho de verdade; nada me impedirá.’ Esta interpretação é justificada pela consideraçãode que ‘ter filhos’ constitui realmente a expressão infantil de um desejo de ter relações sexuais; na verdade, pode ter

NOTA DO EDITOR INGLÊS

MÄRCHENSTOFFE IN TRÄUMEN

( a ) EDIÇÕES ALEMÃS: 1913 Int. Z. Psychoanal ., 1 (2), 147-51. 1918 S. K. S. N ., 4 168-76 (1922, 2ª ed.) 1925 G. S ., 3, 259-66. 1925 Traumlehre , 3-10. 1931 Sexualtheorie und Tramlehre , 308-15. 1946 G. W ., 10, 2-9.

( b ) TRADUÇÃO INGLESA: ‘The Occurrence in Dreams of Material from Fairy Tales’ 1925 C. P ., 4, 236-43 (Trad. de James Strachey.)

A presente tradução inglesa é uma reimpressão ligeiramente corrigida da publicada em 1925.

O segundo dos dois exemplos relatados neste artigo derivou da análise do caso do ‘Wolf Man’, que ainda se achava em tratamento com Freud por ocasião de sua publicação. A totalidade desta parte do trabalho foi incluída literalmente na história clínica, escrita em 1914 mas só publicada quatro anos depois - ‘From the History of on Infantile Neurosis’ (1918 b ). A análise do sonho é ali levada muito adiante (Ver a partir de [1].)

A OCORRÊNCIA, EM SONHOS, DE MATERIAL ORIUNDO DE CONTOS DE FADAS

Não é surpreendente descobrir que a psicanálise confirma nosso reconhecimento do lugar importante que os contos de fadas populares alcançaram na vida mental de nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração de seus contos de fadas favoritos ocupa o lugar das lembranças de sua própria infância; elas transformaram esses contos em lembranças encobridoras. Elementos e situações derivados de contos de fadas podem também ser encontrados em sonhos. Interpretando as passagens em apreço, o paciente produzirá o conto de fadas significativo como associação. No presente artigo, darei dois exemplos desta ocorrência muito comum, mas não será possível fazer mais que aludir às relações entre os contos de fadas e a história da infância do que sonhou e sua neurose, embora esta limitação envolva o risco de romper vínculos que foram de máxima importância para o analista. I Aqui temos o sonho de uma jovem casada, que recebera a visita do marido alguns dias antes: Ela se

achava num quarto que era inteiramente castanho. Uma portinha levava ao alto de uma escada íngreme e, por esta escada, entrou no quarto um curioso homenzinho - pequeno, de cabelos brancos, calvo no alto da cabeça e de nariz vermelho. Ele dançou em volta do quarto na frente dela, portou-se da maneira mais engraçada e depois desceu pela escada novamente. Estava vestido com uma indumentária cinzenta, através da qual todas as partes de sua figura achavam-se visíveis. (Subseqüentemente, foi feita uma correção: Estava usando um casaco preto comprido e calças cinzentas .) A análise foi a seguinte. A descrição da aparência pessoal do homúnculo ajustava-se ao sogro da que sonhou, sem que nenhuma alteração fosse necessária. Imediatamente depois, porém, ela pensou na história de ‘Rumpelstiltskin’, que dançou à roda da mesma maneira engraçada que o homem no sonho e, assim fazendo, revelou seu nome à rainha; mas por isso perdeu seu direito ao primeiro filho daquela, e, em sua fúria, rasgou-se em dois.

No dia anterior ao do sonho, ela estivera do mesmo modo furiosa com o marido e exclamara: ‘Poderia rasgá-lo em dois’. O quarto castanho, a princípio, causou dificuldades. Tudo o que lhe ocorria era a sala de jantar dos pais, que tinha painéis dessa cor - em madeira castanha. Contou então algumas histórias de cama que eram tão inconfortáveis para duas pessoas dormirem. Poucos dias antes, quando o assunto da conversa fora camas de outros países, ela dissera algo muito mal à propôs - de modo inteiramente inocente, segundo sustentava - e todos na sala haviam rido às gargalhadas. O sonho era agora quase inteligível. O quarto de madeira castanha era, em primeiro lugar, uma cama, e, através da vinculação com a sala de jantar, um leito matrimonial. Ela, portanto, achava-se em sua cama de casal. O visitante deve ter sido seu jovem marido, que, após uma ausência de vários meses, visitara-a para desempenhar seu papel na cama dupla. Mas primeiramente era o pai do marido, seu sogro. Por trás desta primeira interpretação, temos um vislumbre de material mais profundo e puramente sexual. Aqui, o quarto era a vagina. (O quarto estava nela - o que foi invertido no sonho.) O homenzinho que fazia caretas e comportava-se de modo tão engraçado era o pênis. A porta estreita e a escada íngreme confirmavam a opinião de que a situação era uma representação da relação sexual. Geralmente estamos acostumados a encontrar o pênis simbolizado por uma criança; mas descobriremos que havia boas razões para um pai ser introduzido para representar o pênis, neste caso. A solução da parte remanescente do sonho confirmar-nos-á inteiramente esta interpretação. A que sonhou, ela própria, explicou a indumentária cinzenta transparente como um preservativo. Podemos depreender que considerações de prevenção de concepção e preocupações sobre saber se aquela visita do marido não poderia ter lançado a semente de um segundo filho, achavam-se entre as causas induzidoras do sonho. O casaco preto. Casacos deste tipo ficavam admiravelmente bem no marido. Ela queria persuadi-lo a usá-los sempre, ao invés de suas roupas usuais. Vestido no casaco preto, portanto, seu marido era como ela gostava de vê-lo. O casaco preto e as calças cinzentas. Em dois níveis diferentes, um acima do outro, isto tinha o mesmo significado: ‘Gostaria que você se vestisse assim. Gosto de você assim.’

que ele ficasse aterrorizado e começasse a gritar. Na figura, o lobo achava-se ereto, dando um passo com uma das patas, com as garras estendidas e as orelhas empinadas. Achava que a figura deveria ter sido uma ilustração da história do ‘Chapeuzinho Vermelho’. Por que os lobos eram brancos? Isto fê-lo pensar nas ovelhas, grandes rebanhos das quais eram mantidos nas vizinhanças da propriedade. O pai ocasionalmente o levava a visitar esses rebanhos e, todas as vezes que isso acontecia, ele se sentia muito orgulhoso e feliz. Posteriormente - segundo indagações feitas, pode facilmente ter sido pouco antes da época do sonho - irrompeu uma epidemia entre as ovelhas. O pai mandou buscar um seguidor de Pasteur, que vacinou os animais, mas após a inoculação morreram ainda mais delas que antes. Como os lobos apareceram na árvore? Isto fê-lo lembrar-se de uma história que ouvira o avô contar. Não podia recordar-se se fora antes ou depois do sonho, mas seu assunto constitui argumento decisivo em favor da primeira opinião. A história dizia assim: um alfaiate estava sentado trabalhando em seu quarto, quando a janela se abriu e um lobo pulou para dentro. O Alfaiate perseguiu-o com seu bastão - não (corrigiu-se), apanhou-o pela cauda e arrancou-a fora, de modo que o lobo fugiu correndo, aterrorizado. Algum tempo mais tarde, o alfaiate foi até a floresta e subitamente viu uma alcatéia de lobos vindo em sua direção; então trepou numa árvore para fugir-lhes. A princípio, os lobos ficaram perplexos; mas o aleijado, que se achava entre eles e queria vingar-se do alfaiate, propôs que trepassem uns sobre os outros, até que o último pudesse apanhá-lo. Ele próprio - tratava-se de um animal velho e vigoroso - ficaria na base da pirâmide. Os lobos fizeram como ele sugeria, mas o alfaiate reconhecera o visitante a que havia castigado e de repente gritou, como fizera antes: ‘Apanhem o cinzento pela cauda!’ O lobo sem rabo, aterrorizado pela recordação, correu, e todos os outros desmoronaram. Nesta história aparece a árvore sobre a qual os lobos se achavam sentados no sonho; mas contém também uma alusão inequívoca ao complexo de castração. O lobo velho tivera a cauda arrancada pelo alfaiate. As caudas de raposa dos lobos do sonho eram provavelmente compensações por esta falta de cauda. Por que havia seis ou sete lobos? Não parecia haver resposta para esta pergunta, até eu levantar uma dúvida sobre saber se a figura que o assustava estava vinculada à história de ‘Chapeuzinho Vermelho’. Este conto de fadas só oferece oportunidade para duas ilustrações - Chapeuzinho Vermelho encontrando-se com o lobo na floresta e a cena em que o lobo se deita na cama, com o barrete de dormir da avó. Teria de haver, portanto, algum outro conto de fadas por trás de sua recordação da figura. Ele logo descobriu que só podia ser a história de ‘O Lobo e os Sete Cabritinhos’. Nesta, ocorre o número sete, e também o número seis, pois o lobo só comeu seis dos cabritinhos, enquanto que o sétimo se escondeu na caixa do relógio. O branco também nela aparece, pois o lobo fizera branquear sua pata no padeiro, após o cabritinhos haverem-no reconhecido, em sua primeira visita, pela pata cinzenta. Além disso, os dois contos de fadas possuem muito em comum. Em ambos existe o comer, a abertura da barriga, a retirada das pessoas que haviam sido comidas e sua substituição por pesadas pedras, e, finalmente, em ambas o lobo mau perece. Além disso tudo, na história dos cabritinhos aparece a árvore. O lobo deitou-se sob uma árvore, após a refeição, e roncou.

Por uma razão especial, terei de tratar deste sonho novamente alhures, interpretá-lo e julgar sua

significação com maiores pormenores; pois ele é o mais antigo sonho de ansiedade que o jovem que sonhou recordou de sua infância, e seu conteúdo, tomado juntamente com outros sonhos que o seguiram pouco após e com certos acontecimentos de seus primeiros anos de vida, é de interesse muito especial. Temos de limitar-nos aqui à relação do sonho com os dois contos de fadas que têm tanto em comum um com o outro, ‘Chapeuzinho Vermelho’ e ‘O Lobo e os Sete Cabritinhos’. O efeito produzido por estas histórias foi demonstrado no pequeno que as sonhou mediante uma fobia animal comum. Esta fobia só se distinguia de outros casos semelhantes pelo fato de o animal causador da ansiedade não ser um objeto facilmente acessível à observação (tal como um cavalo ou um cão), mas conhecido dele somente de histórias e livros de figuras. Examinarei em outra ocasião a explicação destas fobias animais e a significação que se lhes atribui. Observarei apenas, por antecipação, que essa explicação se acha em completa harmonia com a característica principal apresentada pela neurose de que o atual sonhador padeceu mais tarde na vida. Seu medo do pai era o motivo mais forte para ele cair doente e sua atitude ambivalente em relação a todo representante paterno foi o aspecto dominante de sua vida, assim como de seu comportamento durante o tratamento. Se, no caso de meu paciente, o lobo foi simplesmente um primeiro representante paterno, surge a questão de saber se o conteúdo oculto nos contos de fadas do lobo que comeu os cabritinhos e de ‘Chapeuzinho Vermelho não pode ser simplesmente um medo infantil do pai. Além disso, o pai de meu paciente tinha a característica, apresentada por tantas pessoas em relação aos filhos, de permitir-se ‘ameaças afetuosas’; e é possível que, durante os primeiros anos do paciente, o pai (embora se tornasse severo mais tarde) pudesse, mais de uma vez, enquanto acariciava o menininho ou com ele brincava, tê-lo ameaçado por brincadeira ‘de engoli-lo’. Uma de minhas pacientes contou-me que seus dois filhos nunca puderam chegar a gostar do avô, porque, no decurso de seus ruidosos e afetuosos brinquedos com eles, costumava assustá-los dizendo que lhes cortaria as barrigas.

discurso, suspeitaríamos que haveria motivos escondidos por trás das insatisfatórias razões apresentadas. Shakespeare não inventou este oráculo da escolha de um escrínio; tirou-o de uma história das Gesta Romanorum , no qual uma moça tem de fazer a mesma escolha para conquistar o filho do Imperador. Também aqui o terceiro metal, o chumbo, é o portador da fortuna. Não é difícil adivinhar que temos aqui um tema antigo, que exige ser interpretado, explicado à sua origem. Uma primeira conjectura quanto ao significado desta escolha entre ouro, prata e chumbo é rapidamente confirmada por uma afirmação de Stucken, que efetuou um estudo do mesmo material num amplo campo. Escreve ele: ‘A identidade dos três pretendentes de Portia fica clara por sua escolha: o Príncipe de Marrocos escolhe o escrínio de ouro - ele é o Sol; o Príncipe de Aragão escolhe o escrínio de prata - ele é a Lua; Bassanio escolhe o escrínio de chumbo - ele é o filho da estrela!’ Em apoio de sua explicação, cita um episódio da epopéia folclórica estoniana, ‘Kalewipoeg’, no qual os três pretendentes aparecem sem disfarce como os filhos do Sol, da Lua e estrelas (o último sendo ‘o filho mais velho da Estrela Polar’) e, mais uma vez, a noiva cabe ao terceiro. Assim nosso pequeno problema conduziu-nos a um mito astral! Só é pena que, com esta explicação, não nos achemos no final da questão. Ela não está exaurida, pois não partilhamos da crença de alguns pesquisadores de que os mitos foram lidos nos céus e trazidos à Terra; estamos mais inclinados a julgar, com Otto Rank, que eles foram projetados para os céus após haverem surgido alhures, sob condições puramente humanas. É neste conteúdo humano que reside nosso interesse. Examinemos novamente nosso material. Na épica estoniana, tal como no conto oriundo das Gesta Romanorum , o tema é uma moça que escolhe entre três pretendentes; na cena de O Mercador de Veneza , o assunto é aparentemente o mesmo, mas, ao mesmo tempo, nele aparece algo com o caráter de uma inversão do tema: um homem escolhe entre três - escrínios. Se aquilo em que estamos interessados fosse um sonho, ocorrer-nos-ia em seguida que os escrínios são também mulheres, símbolos do que é essencial na mulher, e portanto da própria mulher - como arcas, cofres, caixas, cestos etc. Se corajosamente presumirmos que há substituições simbólicas do mesmo tipo também nos mitos, então a cena do escrínio em O Mercador de Veneza tornar-se realmente a inversão que suspeitamos. Com um aceno de varinha de condão, como se estivéssemos num conto de fadas, despojamos de nosso tema a indumentária astral e agora percebemos que ele é um tema humano, a escolha de um homem entre três mulheres. Este mesmo conteúdo, porém, pode ser encontrado noutra cena de Shakespeare, num de seus dramas mais poderosamente comoventes; não a escolha de uma noiva desta vez, mas ligada por muitas semelhanças ocultas à escolha do escrínio em O Mercador de Veneza. O velho Rei Lear resolve dividir seu reino, enquanto ainda se acha vivo, entre as três filhas, em proporção à quantidade de amor que cada uma delas expressar por ele. As duas mais velhas, Goneril e Regan, exaurem-se em asseverações e louvores de seu amor por ele; a terceira, Cordélia, recusa-se a fazê-lo. Ele deveria ter reconhecido o despretensioso e mudo amor da terceira filha e o recompensado, mas não o faz. Repudia Cordélia e divide o reino entre as outras duas, para sua própria ruína e ruína geral. Não é esta, mais uma vez, a cena de uma escolha entre três mulheres, das quais a mais jovem é a melhor, a mais excelsa? Imediatamente ocorrer-nos-ão outras cenas oriundas de mitos, contos de fadas e da literatura, com a mesma situação por conteúdo. O pastor Páris tem de escolher entre três deusas, das quais declara ser a

terceira a mais bela. Cinderela também é uma filha mais nova, preferida pelo príncipe às duas irmãs mais velhas. Psiqué, na história de Apulcio, é a mais jovem e bela de três irmãs. Ela é, por um lado, reverenciada como Alfrodite em forma humana; por outro, é tratada por esta deusa como Cinderela foi tratada por sua madrasta e é-lhe atribuída a tarefa de selecionar um monte de sementes misturadas, o que realiza com o auxílio de pequenas criaturas (pombas no caso de Cinderela, formigas no de Psiqué). Quem quer que me preocupasse em fazer um levantamento mais amplo do material descobriria indubitavelmente outras versões do mesmo tema, conservando as mesmas características essenciais. Contentemo-nos com Cordélia, Afrodite, Cinderela e Psiqué. Em todas as histórias, as três mulheres, das quais a terceira é a mais excelsa, devem seguramente ser encaradas como de certo modo semelhantes, se são representadas como irmãs. (Não devemos deixar-nos desencaminhar pelo fato de a escolha de Lear ser entre três filhas ; isto pode não representar nada mais do que ele ter de ser representado como um velho. Um velho não pode escolher muito bem entre três mulheres, de nenhuma outra maneira. Assim, elas se tornaram suas filhas.) Mas quem são estas três irmãs e por que deve a escolha recair na terceira? Se pudermos responder esta pergunta, estaremos na posse da interpretação que estamos buscando. Já fizemos anteriormente uso de uma aplicação da técnica psicanalítica, quando explicamos os três escrínios simbolicamente como três mulheres. Se tivermos a coragem de proceder da mesma maneira, estaremos iniciando um caminho que nos levará primeiro a algo inesperado e incompreensível, mas que talvez, por uma estrada indireta, nos conduzirá a um objetivo. Deve impressionar-nos que esta excelsa terceira mulher tenha, em diversos casos, certas qualidades peculiares, além de sua beleza. São qualidadesque parecem tender no sentido de algum tipo de unidade e não devemos por certo esperar encontrá-las igualmente bem assinaladas em todos os exemplos. Cordélia torna-se irreconhecível, indistinguível como o chumbo, permanece muda, ‘ama e cala’. Cinderela se esconde de maneira a não ser encontrada. Podemos talvez permitir-nos igualar ocultamento e mudez. Estes, naturalmente, seriam apenas dois exemplos, dos cinco que escolhemos. Mas há uma insinuação da mesma coisa a ser encontrada, de modo bastante curioso, em dois outros casos. Decidimos comparar Cordélia, com sua recusa obstinada, ao chumbo. No breve discurso de Bassanio, enquanto está escolhendo o escrínio, diz ele do chumbo (sem, de maneira alguma, conduzir a fala para a observação): ‘Tua palidez comove-me mais que a eloqüência.’ Quer dizer: ‘Tua simplicidade comove-me mais que a natureza espalhafatosa dos outros dois.’ Ouro e prata são ‘gritantes’; o chumbo é mudo - na verdade, como Cordélia, que ‘ama e cala’. Nos antigos relatos gregos do julgamento de Páris, nada se diz de tal reticência por parte de Afrodite. Cada uma das três deusas fala ao jovem e tenta conquistá-lo através de promessas. Mas, de modo bastante esquisito, num tratamento inteiramente moderno da mesma cena, esta característica da terceira, que nos impressionou, faz seu aparecimento de novo. No libreto de La Belle Hélène , de Offenbach, Páris, após falar das solicitações das outras duas deusas, descreve a conduta de Afrodite na competição pelo prêmio da beleza: La troisième, ah! la troisième… La troisième ne dit rien.

confere aos homens são atribuídas à própria divindade. Um deslocamento assim surpreender-nos-ia ainda menos em relação à Deusa da Morte, visto que nas versões e representações modernas, que estas histórias estariam assim antecipando, a própria Morte nada mais é que um morto. Mas se a terceira das irmãs é a Deusa da Morte, as irmãs nós conhecemos. Trata-se das Parcas, das Moiras, das Nornas, a terceira das quais é chamada Átropos, a inexorável. II Colocaremos de lado por enquanto a tarefa de inserir a interpretação encontrada em nosso mito e escutaremos o que os mitólogos têm a ensinar-nos sobre o papel e a origem das Parcas. A primitiva mitologia grega (em Homero) conhecia apenas uma só g, a personificar o destino inevitável. O desenvolvimento ulterior desta Moira única num conjunto de três (ou, menos amiúde, duas) deusas-irmãs provavelmente efetuou-se com base noutras figuras divinas a que as Moiras se achavam estreitamente relacionadas - as Graças e as Horas [as Estações].

As Horas eram originalmente deusas das águas do céu, distribuidoras da chuva e do orvalho, e das nuvens das quais a chuva cai; visto as nuvens serem concebidas como algo que fora tecido, aconteceu que essas deusas fossem encaradas como fiandeiras, atributo que depois se relacionou às Moiras. Nas terras mediterrâneas favorecidas pelo Sol, é da chuva que a fertilidade do solo depende, e assim as Horas tornaram-se deusas da vegetação. A beleza das flores e a abundância dos frutos eram criações suas, e a elas era creditada abundância de traços agradáveis e encantadores. Tornaram-se as representantes divinas das Estações, sendo provavelmente devido a esta conexão que havia três delas, se a natureza sagrada do número três não foi explicação suficiente. Pois os povos da antigüidade a princípio distinguiam apenas três estações: inverno, primavera e verão. O Outono só foi acrescentado em período greco-romano posterior, após o que as Horas foram muitas vezes representadas na arte em número de quatro. As Horas mantiveram sua relação com o tempo. Posteriormente, presidiram às horas do dia, como a princípio haviam feito às épocas do ano; e, por fim, seu nome veio a ser simplesmente uma designação das horas ( heure, ora ). As Nornas da mitologia germânica são aparentadas com as Horas e as Moiras e apresentam esta significação de tempo em seus nomes. Era inevitável, contudo, que se viesse a ter uma visão mais profunda da natureza essencial desta deidades, e que sua essência fosse transposta para a regularidade com que as estações mudam. As Horas, assim, tornaram-se as guardiãs da lei natural e da Ordem divina que fazem a mesma coisa reaparecer na Natureza numa seqüência inalterável. Esta descoberta da Natureza reagiu sobre a concepção da vida humana. O mito da natureza transformou-se num mito humano: as deusas do tempo tornaram-se deusas do Destino. Este aspecto das Horas, porém, encontrou expressão apenas nas Moiras, que vigiam a ordenação necessária da vida humana tão inexoravelmente quanto as Horas, a ordem normal da Natureza. A inelutável severidade da Lei e sua relação com a morte e a dissolução, que haviam sido evitadas nas encantadoras figuras das Horas, estavam agora caracterizadas nas Moiras, como se os homens só houvessem percebido toda a seriedade da lei natural quando tiveram de submeter suas próprias personalidades a ela.

Os nomes das três fiandeiras foi também significativamente explicado pelos mitólogos. Láquesis, o nome da segunda, parece designar ‘o acidental que se acha incluído na regularidade do destino’ - ou, como diríamos, a ‘experiência’; tal como Átropos representa ‘o inelutável’ - a Morte. A Cloto sobraria então significar a disposição inata, com suas implicações fatídicas. Mas já é tempo de retornar ao tema que estamos tentando interpretar - o tema da escolha entre três irmãs. Ficaremos profundamente desapontados em descobrir quão ininteligíveis se tornam as situações sob exame e que contradições resultam de seu conteúdo aparente, se aplicarmos a elas a interpretação que descobrimos. Segundo nossa suposição, a terceira das irmãs é a Deusa da Morte, a própria Morte. Mas no Julgamento de Páris ela é a deusa por sua beleza; em O Mercador de Veneza , é a mais bela e sábia das mulheres; no Rei Lear , é a única filha leal. Podemos perguntar se pode existir contradição mais completa. Talvez, por improvável que possa parecer, haja outra ainda mais completa ao alcance da mão. Na verdade, certamente existe, visto que, onde quer que nosso tema ocorra, a escolha entre as mulheres é livre e no entanto recai na morte. Afinal de contas, ninguém escolhe a morte e é apenas por fatalidade que se tomba vítima dela. Entrentanto, contradições de um certo tipo - substituições pelo contrário exato - não oferecem dificuldade séria ao trabalho da interpretação analítica. Não apelaremos aqui para o fato de os contrários serem tão amiúde representados por um só e mesmo elemento nos modos de expressão utilizados pelo inconsciente, tal como, por exemplo, nos sonhos. Mas lembraremos que existem na vida mental forças motivadoras que ocasionam a substituição pelo oposto, na forma do que é conhecido como formação reativa; e é precisamente na relação de forças ocultas como estas que procuramos a recompensa de nossa indagação. As Moiras foram criadas em resultado de uma descoberta que advertiu o homem de que ele também faz parte da natureza e, portanto, acha-se sujeito à imutável lei da morte. Algo no homem estava fadado a lutar contra esta sujeição, pois é apenas com extrema má-vontade que ele abandona sua pretensão a uma posição excepcional. O homem, como sabemos, faz uso de sua atividade imaginativa a fim de satisfazer os desejos que a realidade não satisfaz. Assim sua imaginação rebelou-se contra o reconhecimento da verdade corporificada no mito das Moiras e construiu em seu lugar o mito dele derivado, no qual a Deusa da Morte foi substituída pela Deusa do Amor e pelo que lhe era equivalente em forma humana. A terceira das irmãs não era mais a Morte; era a mais bela, a melhor, a mais desejável e amável das mulheres. Tampouco foi esta substituição, de modo algum, tecnicamente difícil: ela foi preparada por uma antiga ambivalência e executada ao longo de uma linha primeva de conexão, que não poderia ter sido há muito esquecida. A própria Deusa do Amor, que agora assumira o lugar da Deusa da Morte, fora outrora idêntica a ela. Mesmo a Afrodite grega não abandonara inteiramente sua vinculação com o mundo dos mortos, embora há muito tempo houvesse entregado seu papel ctônico a outras figuras divinas, a Perséfone ou à triforme Artêmis-Hécate. As grandes deusas-Mães dos povos orientais, contudo, parecem todas ter sido tanto criadoras quanto destruidoras - tanto deusas da vida e da fertilidade quanto deusas da morte. Assim, a substituição por um oposto desejado em nosso tema retorna a uma identidade primeva. A mesma consideração responde à pergunta de como a característica de uma escolha juntou-se ao mito das três irmãs. Aqui também houve uma inversão desejada. A escolha se coloca no lugar da necessidade,