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Numa manhã perfeita de Maio… Neville Wyatt, conde de Kilbourne, aguarda a sua noiva no altar. Mas, para espanto geral, em vez da bela jovem que todos conhecem aparece uma mendiga andrajosa. Perante a nata da aristocracia, o perplexo conde olha para ela e declara que é Lily, a sua mulher! Ao olhar para aquela que em tempos desposou, que amou e perdeu nos campos de batalha de Portugal, ele compromete-‐se a honrar o seu compromisso… apesar do abismo que agora os separa. Até que Lily fala com franqueza… E aIirma querer começar de novo… e que Neville a ame verdadeiramente. Para isso, sabe que terá de estar à altura das expectativas dele, o que a leva a aceitar ser dama de companhia da sua tia e aprender as boas maneiras. A determinada Lily rapidamente conquista a admiração da alta sociedade, demonstrando ser uma condessa à altura do seu conde. Por seu lado, Neville está disposto a tudo para provar à sua formidável mulher que o que sentiu por ela no campo de batalha foi muito mais que desejo, muito mais do que o arrebatamento de… Uma noite de amor.
CAPÍTULO 1
Apesar do cedo da hora e do frio que fazia, o pátio da estalagem White
Horse, em Fetter Lane, Londres, transbordava de gente e barulho. A
diligência para West Country estava se preparando para a sua viagem
diária. Eram poucos os passageiros que já tinham subido. A maioria deles
dava voltas, nervosos, para se assegurar de que a sua bagagem estava
adequadamente colocada. Os vendedores ambulantes tratavam de vender
seus produtos aos passageiros que esperavam um dia longo e tedioso. Os
cavalariços se ocupavam de suas tarefas. Quando não eram jogados de
volta à rua, alguns meninos esfarrapados corriam de um lado para outro,
alimentando-se da excitação.
O guarda tocou a corneta, uma advertência ensurdecedora de que a
diligência partiria em poucos minutos e que todos os que tivessem bilhete
fariam bem em subir a bordo.
O capitão Gordon Harris, muito elegante com o uniforme verde do
Noventa e cinco de Fuzileiros, e sua jovem esposa, que estava vestida com
roupa e casaco da moda, pareciam um pouco deslocados naquele ambiente
tão pouco elegante. Mas eles não eram passageiros. Tinham acompanhado
uma mulher ao White Horse para se despedirem dela.
O aspecto da mulher contrastava fortemente com o deles. Embora fosse
limpa e bem arrumada, não se podia negar que sua roupa estava gasta.
Usava um simples vestido de algodão de cintura alta com um xale para se
agasalhar. Ambas as roupas pareciam muito usadas e lavadas. Estava claro
que o seu chapéu, que possivelmente em algum tempo fora bonito, embora
nunca na moda, tinha protegido a sua proprietária de muitas chuvas. Sua
ampla aba estava flácida e deformada. Ela era jovem. Na realidade, era tão
pequena e magra, que à primeira vista, poderia ser confundida com uma
menina. Mas havia algo nela que atraía segundos olhares, mais demorados,
por parte dos vários homens que se ocupavam das diversas tarefas. Havia
beleza e graça e um ar indefinível de feminilidade nela que proclamavam
que era em nenhuma dúvida uma mulher.
- Devo subir à carruagem. – Disse sorrindo ao capitão e sua esposa –
Não é necessário que esperem mais. Faz muito frio para estar aqui de pé. –
Estendeu as esbeltas mãos à senhora Harris, embora continuasse olhando
alternativamente para os dois. – Como poderei lhes agradecer
suficientemente por tudo o que têm feito por mim?
As lágrimas afloraram nos olhos da senhora Harris e estreitou com
força a jovem entre os seus braços.
- Não fizemos nada muito importante – Disse– E agora a abandonamos
para que viaje na diligência, da forma mais barata de transporte, quando
poderia ter ido mais respeitavelmente em uma carruagem alugada ou no
pior dos casos, na carruagem dos correios.
- Já me emprestaram muito – Disse a jovem– para que eu possa
permitir luxos desnecessários.
- Emprestamos? – A senhora Harris tirou um lenço bordado da bolsa e
secou os olhos com ele.
- Ainda não é muito tarde para mudar de planos, sabe? – Falou o
capitão Harris segurando uma das mãos da jovem entre as suas. – Volta
para hotel para tomar o café da manhã conosco e escreverei essa carta,
antes de que tomemos algo, e a enviarei em seguida. Atrevo-me a dizer que
chegará uma resposta dentro desta mesma semana.
- Não, senhor. – Respondeu ela, com muita firmeza, embora sorrisse –
Não posso esperar. Devo ir.
Ele não insistiu mais. Suspirou, deu-lhe umas tapinhas na mão e logo,
impulsivamente, atraiu-a para ele e a abraçou como tinha feito a sua
esposa. A jovem corria o perigo de perder o assento no interior como ele
tinha insistido. Inclusive tinha dado uma gorjeta ao cocheiro para que lhe
assegurasse um lugar junto à janela para a longa viajem até a aldeia de
Upper Newbury, em Dorsetshire. Mas uma mulher robusta, com aspecto de
estar disposta de se encarregar de qualquer cocheiro ou capitão do exército
que se atrevesse a cruzar o seu caminho, ou inclusive dos dois de uma só
vez, já se estava acomodando na única cadeira da janela ainda disponível.
A jovem teve que se introduzir apertada no assento do meio. Não
parecia compartilhar da cólera do capitão. Sorriu e fez um gesto,
grande parque, muito bem cuidado, que incluía um vale solitário cheio de
samambaias e uma praia privada de areia dourada. Situado além das
grades do parque, Upper Newbury era um povoado pitoresco, com casas
caiadas com teto de palha, agrupadas ao redor de um prado, junto à igreja
de Todos os Santos, com seu alto capitel, e uma estalagem com a taverna
em baixo e a sala de refeições e os quartos dos hóspedes em cima. O
povoado de Lower Newbury, uma comunidade pesqueira construída ao
redor da protegida baía em que ficavam os navios de pesca em repouso
quando não eram usados, comunicava-se com o povoado de cima por um
íngreme atalho, ladeado de casas e de algumas lojas.
Os habitantes de ambos os povoados e das terras ao redor estavam, em
geral, contentes com a tranquila inércia de sua vida. Mas, no fim das contas,
eram humanos. Gostavam um pouco de excitação tanto como qualquer filho
de vizinho. Newbury Abbey a proporcionava de vez em quando.
O último grande espetáculo foi o funeral do velho conde, há mais de um
ano. O novo conde, seu filho, estava em Portugal naquela época, com os
exércitos de lorde Wellington, e não pôde voltar a tempo para o fúnebre
acontecimento. Mais tarde, vendeu seu posto no exército e voltou para casa
para assumir as suas responsabilidades.
E agora, em princípios de maio de 1813, os habitantes dos dois
Newbury estavam a ponto de experimentar algo muito mais prazenteiro,
muito mais esplêndido que um funeral. Neville Wyatt, o novo conde de
Kilbourne, um jovem de vinte e sete anos, ia se unir a sua prima em
matrimônio, a qual tinha sido criada na abadia com ele e com sua irmã, lady
Gwendoline. Seu pai, o defunto conde, e o barão Galton, o avô materno da
noiva, tinham planejado o enlace há muitos anos atrás.
Era uma união que gozava do favor popular. Os aldeãos concordavam
que não havia um casal mais atraente do que o conde de Kilbourne e a
senhorita Lauren Edgeworth. Quando sua senhoria foi para a guerra, contra
o desejo de seu pai, segundo se murmurava, era um jovem alto, esbelto,
loiro e bonito. Voltou, seis anos depois, melhorado até ser quase
irreconhecível. Era largo onde um homem deve ser largo, esbelto onde um
homem deve ser esbelto e em bom estado físico, forte e rijo. Mesmo a
cicatriz de uma velha ferida de sabre que percorria o seu rosto da têmpora
direita até o queixo, evitando por muito pouco o olho e o canto dos lábios,
parecia mais aumentar o seu atrativo do que danificá-lo. Quanto à
senhorita Edgeworth, era alta, esbelta, elegante e mais bonita do que
qualquer quadro, com seus cachos escuros e brilhantes e uns olhos que
alguns descreviam como de cor cinza esfumaçada e outros de violeta,
embora todos estivessem de acordo que eram inusualmente encantadores.
E tinha esperado pacientemente o seu conde até uma idade quase
perigosamente avançada. Já tinha completado os vinte e quatro anos.
Todos estavam de acordo de que tudo era muito conveniente e muito
romântico.
Durante dois dias uma corrente ininterrupta de imponentes carruagens
tinha cruzado a aldeia, enquanto o povo os contemplava com a boca aberta
e os mais refinados espionavam ocultos atrás das cortinas das janelas.
Dizia-se que a metade das pessoas de categoria da Inglaterra iria para o
acontecimento e mais pessoas com título das que alguns deles pensavam
que havia em toda a Inglaterra, Escócia e Gales juntos. Murmurava-se,
embora certamente fosse mais um fato do que um rumor, porque vinha
diretamente do primeiro primo do cunhado da tia de uma das ajudantes de
cozinha de Newbury, que não restava nenhum quarto na abadia que não
estivesse cheio de hóspedes. E isso representava um número prodigioso de
aposentos.
Uma série de famílias do lugar tinham recebido convites para as bodas,
ao almoço que se celebraria em seguida na abadia e ao grande baile da
noite anterior às bodas. A verdade é que ninguém recordava uns planos
mais minuciosamente pensados. Nem sequer os mais humildes estavam
condenados a ser meros espectadores. Enquanto os convidados às bodas
estivessem tomando o café da manhã, os aldeãos, por sua parte,
desfrutariam de uma suntuosa comida, servida na estalagem sob a
responsabilidade do conde e a seu encargo.
Depois haveria baile ao redor do marco levantado no prado.
A véspera das bodas era um momento de intensa atividade no povoado.
Tentadores aromas de comida saíam da estalagem durante todo o dia,
como promessa do festim do dia seguinte. Algumas das mulheres
preparavam as mesas na sala de refeições, enquanto seus maridos
penduravam grinaldas de cores no marco e os meninos as experimentavam
e recebiam repreensões por enredá-las e estar sempre no meio. A senhorita
Taylor, filha solteirona do anterior vigário, e sua irmã mais jovem, Amelia,
festivo, mas não era uma situação incomum para Lily. Um grande número
de homens juntos não a fazia sentir-se agitada nem assustada.
- Algo mais de meia légua, se quer sabê-lo – Disse o hospedeiro,
apoiando uns cotovelos enormes no balcão e olhando-a de cima abaixo com
evidente curiosidade.
- Em que direção? – Perguntou Lily.
- Passada a igreja e através do portão, – Disse, apontando – depois siga
o caminho das carruagens.
- Obrigada. – Disse Lily educadamente e deu meia volta.
- Eu, em seu lugar, linda, – Disse, com um tom não isento de
amabilidade, um homem sentado em uma das mesas – bateria na porta do
vigário junto à igreja, deste lado. Darão a você um pouco de pão e uma jarra
de água.
- Venha e sente-se aqui, entre Mitch e eu – Acrescentou outro dos
homens, com um tosco bom humor– farei que tenha seu pão e uma jarra de
cerveja para acompanhá-lo, querida.
Suas palavras foram recebidas com fortes gargalhadas, unidas a
assobios e ao ruído das mesas ao serem golpeadas com a palma da mão.
Lily sorriu, sem ofender-se. Estava acostumada a homens e maneiras
grosseiras. Raramente tinham más intenções, nem tampouco a intenção de
lhe faltar ao respeito.
- Obrigada, – Disse– mas esta noite não.
Saiu da estalagem. Mais de meia légua. E já quase era de noite. Mas não
podia esperar até pela manhã. Onde ia alojar se? Tinha suficiente dinheiro
para comprar um copo de limonada e possivelmente um pão pequeno, mas
não para pagar um quarto para passar a noite. Além disso, estava muito
perto.
Só faltava pouco mais de meia légua.
O salão de baile de Newbury Abbey, magnífico inclusive quando estava
vazio, agora estava cheio de flores amarelas, laranjas e brancas,
procedentes dos jardins e estufas, e adornado com fitas e laços de cetim
brancos. Resplandecia com as luzes de centenas de velas colocadas nos
lustres de cristal do teto e com seus mil reflexos nos longos espelhos que
cobriam duas das paredes. Estava lotado com a flor e a nata da boa
sociedade além dos membros da burguesia local, todos vestidos com seus
melhores trajes para o baile da véspera de bodas. O cetim e a seda
brilhavam e os bordados e os fios de linho das toalhas resplandeciam. As
caras gemas cintilavam. Os perfumes mais caros competiam com o aroma
de mil flores. Subia o tom das vozes, em um esforço de todos para serem
ouvidos por cima de outros e do som da música que oferecia uma orquestra
completa.
Mais à frente do salão, os convidados passeavam pelo amplo patamar e
ascendiam ou desciam pela dupla escadaria curva até o grande vestíbulo
abobadado, com colunas. Saíam para o balcão do outro lado do salão ou ao
terraço em frente à casa. Passeavam ao redor da fonte de pedra, sob o
terraço. Perambulavam pelos caminhos de cascalho do jardim de rochas e
flores ao leste da casa. Havia luzes coloridas penduradas ao redor da fonte
e nas árvores, embora a luz da lua tivesse, inclusive, oferecido iluminação
sem elas.
Era uma noite de maio perfeita. Somente cabia esperar, como vários
dos convidados comentaram em voz alta à Lauren e Neville, quando os
saudaram ao chegar, que amanhã fosse um dia igualmente magnífico.
- Amanhã será magnífico em dobro, – Respondia Neville cada vez, com
um cálido sorriso para sua noiva, – embora ruja o vento, chova a cântaros e
troveje sem parar.
O sorriso de Lauren só podia ser descrito como radiante. Enquanto a
acompanhava ao salão para as primeiras danças tradicionais, Neville
pensou que era estranho que tivesse vacilado alguma vez em convertê-la
em sua esposa, que a tivesse feito esperar seis anos, enquanto ele esgotava
a impaciente rebeldia da juventude como oficial no Noventa e cinco dos
Fuzileiros. Tinha aconselhado a ela que não o esperasse, claro. Sentia muito
afeto por ela para deixá-la ali pendurada, quando não estava seguro de suas
intenções para com ela. Mas ela tinha esperado. Agora se alegrava disso,
depois de que a paciência e fidelidade da jovem lhe deram uma lição de
humildade. Suas próximas bodas eram justas. E seu afeto por ela não tinha
diminuído.
Tinha crescido ao mesmo tempo que a admiração por seu caráter e a
Neville sorriu, depois de franzir os lábios e arrumar a fita do seu
monóculo.
- Se deixar que essas palavras cheguem aos ouvidos de qualquer dama,
Paul, – Ameaçou – possivelmente me veja obrigado a lhe pedir que saiamos.
Cavalheiros, divirtam-se, mas não descuidem das damas, por favor.
Dirigiu-se, lentamente, para onde estava sua noiva. Estava vestida com
um traje de cintura alta, de renda sobre tafetá de Veneza, de cor amarela
narciso, e parecia tão viçosa e encantadora como a primavera. Era de
verdade uma lástima que não pudesse voltar a dançar com ela durante o
resto da noite. Mas seria muito estranho que não conseguisse arrumar as
coisas mais a seu gosto.
Não foi possível imediatamente. Foi necessário sustentar uma cortês
conversa com o senhor Calvin Dorsey, um conhecido do avô do Lauren de
meia idade e maneiras suaves, que tinha vindo solicitar à Lauren a dança de
depois do jantar e que ficou uns minutos por cortesia. E logo chegou o
duque de Portfrey, pisando os calcanhares de Dorsey para levar Elizabeth
para a próxima dança. Era seu amigo e pretendente desde muito tempo.
Mas finalmente, Neville viu sua oportunidade.
- Lá fora mais parece ser verão do que primavera. – Comentou, sem se
dirigir a ninguém em particular – O jardim de rochas deve ter um aspecto
encantador à luz das lanternas. – Sorriu à Lauren com um deliberado ar
nostálgico.
- Humm. – Disse ela– E a fonte também.
- Suponho que reservou a dança seguinte com Lauren, não é, tio
Webster?
- É obvio que sim – Respondeu o duque de Anburey, mas piscou um
olho a seu sobrinho por cima da cabeça de Lauren. Não tinha passado por
cima a indireta. – Mas de tanto falar de lanternas e noites de verão me fez
ter vontade de ver os jardins pelo braço de Sadie. – Olhou para sua esposa e
moveu as sobrancelhas. – Se pudesse convencer a alguém para que se
encarregasse de Lauren em meu lugar...
- Se me torcesse o braço bastante forte, – Disse Neville– talvez pudesse
me persuadir de que eu mesmo me encarregasse eu da tarefa.
E assim foi, pois um minuto depois, descia pelas escadas com sua noiva
pelo braço. Certamente, foram detidos, pelo menos meia dúzia de vezes,
por convidados que desejavam felicitá-los pelo baile e lhes desejar o
melhor para o dia seguinte e nos anos vindouros, mas finalmente chegaram
fora e desceram pela ampla escadaria de mármore para deleitarem-se
olhando os arco íris criados pela luz das lanternas na superfície da água da
fonte. Dirigiram-se lentamente para o jardim de rochas.
- É um manipulador desavergonhado, Neville– Disse Lauren.
- E isso lhe alegra? – Aproximou mais a cabeça da dela.
Ela pensou um momento, com a cabeça inclinada e uma covinha
delatora na face esquerda.
- Sim. – Disse com decisão– Muito.
- Recordaremos desta noite – Respondeu ele– como uma das mais
felizes de nossa vida. – Aspirou a frescura do ar com seu leve sabor de
salitre marinho. Entrecerrou os olhos de forma que as luzes de cada
lanterna do jardim rochoso se confundisse em um caleidoscópio de cores.
- Oh, Neville. – Exclamou Lauren, apertando-lhe o braço com a mão–
Alguém tem direito a tanta felicidade?
- Sim. – Respondeu ele, em voz baixa, ao ouvido – Você.
- Mas olhe o jardim. As lanternas fazem que se pareça o país das fadas.
- Neville se dispôs a desfrutar daquela inesperada meia hora com ela.
Pelo menos as luzes e o som da música que chegou a seus ouvidos quando
foi se aproximando, asseguravam-lhe que ele devia estar em casa.
Não sabia por que, mas tampouco aquela ideia lhe parecia
especialmente reconfortante.
As imponentes portas duplas de entrada a Newbury Abbey estavam
abertas. A luz do interior se derramava pela escadaria de mármore que
levava até elas e de dentro se ouviam, ressonantes, vozes e risadas.
Também se ouviam vozes no exterior, embora Lily só visse umas sombras
longínquas na escuridão e ninguém a viu aproximar-se.
Subiu os degraus de mármore - havia oito, conforme contou- e entrou
em um vestíbulo tão brilhantemente iluminado e tão amplo que, de
repente, sentiu-se diminuída, sem fôlego e sem poder pensar com
coerência. Havia gente por toda parte, dando voltas pelo vestíbulo, subindo
e baixando as impressionantes escadarias. Todos estavam vestidos com
ricos tecidos e cintilavam com joias e pedras preciosas. Bobamente, Lily
tinha esperado chegar a uma porta fechada, bater e que ele lhe abrisse.
Naquele momento, desejou ter permitido que o capitão Harris
escrevesse sua carta e ter esperado a resposta. O que tinha feito, em troca,
já não lhe parecia absolutamente sensato.
Vários criados de libré e com perucas brancas atendiam aos
convidados. Observou com alívio que um deles se dirigia apressadamente
para ela. Sentia-se invisível e conspícua ao mesmo tempo.
- Fora daqui imediatamente! – Ordenou-lhe, em voz baixa, tratando de
fazê-la retroceder para as portas, embora sem chegar a empurrá-la. Estava
claro que não queria chamar a atenção para ele nem para ela. – Se algum
assunto a trouxe aqui, direi onde está a entrada de serviço. Mas duvido que
seja assim, especialmente a estas horas da noite.
- Desejo falar com o conde de Kilbourne– Disse Lily. Nunca pensava
nele com esse nome. Parecia-lhe estar perguntando por um estranho.
- Ah, ora! Assim deseja falar com o conde? – O criado a olhava com um
desprezo que feria– Se tiver vindo mendigar, saia antes que chame um
guarda.
- Desejo falar com o conde de Kilbourne. – Repetiu, sem ceder terreno.
O criado pôs as mãos enluvadas nos seus ombros, com a evidente
intenção de obrigá-la a retroceder à força. Mas outro homem tinha
aparecido ao lado do primeiro, um homem vestido de branco e negro,
embora não com a mesma classe de esplendor que outros cavalheiros que
estavam no vestíbulo ou nas escadas. Lily supôs que também devia ser um
criado, embora de uma categoria superior ao primeiro.
- O que acontece, Jones? – Perguntou friamente– Nega-se a partir sem
armar confusão?
- Desejo falar com o conde de Kilbourne – Repetiu Lily.
- Pode partir por sua própria vontade agora, – Disse-lhe com uma
tranquila ênfase o homem de negro– ou ser detida por mendicância dentro
de cinco minutos e encerrada no cárcere. Você escolhe, mulher. Pouco me
importa. O que decide?
Lily abriu a boca de novo e respirou fundo. Tinha chegado em um mau
momento, estava claro. Estavam celebrando algum tipo de acontecimento
importante. Não lhe agradeceria que se apresentasse naquele momento. E
mais, possivelmente não lhe agradecesse absolutamente que tivesse vindo.
Agora que tinha visto aquilo, começava a compreender como impossível
era tudo. Mas o que outra coisa podia fazer? Aonde podia ir? Fechou a boca.
- Bem? – Perguntou o criado de mais categoria.
- Algum problema, Forbes? – Perguntou outra voz muito mais culta, e
Lily voltou a cabeça para ver um cavalheiro de mais idade, com o cabelo
prateado, e uma dama vestida de cetim púrpura com um turbante
combinando, apoiada em seu braço. A dama usava um anel em cada dedo,
por cima da luva.
- Nada absolutamente, sua excelência. – Respondeu o criado chamado
Forbes, com uma inclinação diferente– Só é uma mendiga que teve a
insolência de chegar até aqui. Partirá em seguida.
- Bem, dê-lhe seis pennies. – Disse o cavalheiro, olhando Lily com certa
compaixão– Com isso, poderá comprar pão para dois dias, moça.
Desanimada, Lily decidiu que não era o momento de manter-se firme.
Estava muito perto do final de sua viagem e, entretanto, parecia que estava
mais longe do que nunca. O criado de negro estava mexendo no bolso,
certamente procurando uma moeda de seis pennies.
- Obrigado, – Disse a jovem, com dignidade– mas não vim aqui em
fome e decidiu ocupar parte do tempo indo até o povoado, onde
possivelmente poderia comprar um pouco de pão. Mas quando chegou,
percebeu com que não era o lugar tranquilo e deserto da noite anterior. A
praça estava rodeada quase por completo de esplêndidas carruagens,
possivelmente as mesmas que tinha visto antes, junto aos estábulos da
abadia. O próprio prado estava abarrotado de gente. As portas da
estalagem estavam totalmente abertas e o movimento das pessoas que
entravam e saíam com ansiedade a desanimou de se aproximar. Viu que o
caminho para a igreja estava lotado com uma multidão mais densa ainda do
que a que havia no prado.
- O que acontece? – Perguntou a algumas mulheres que estavam à
margem do prado, perto da estalagem, uma delas na ponta dos pés.
Voltaram a cabeça e ficaram olhando fixamente. Uma a olhou de cima
abaixo, reconheceu-a como forasteira e franziu o cenho. A outra se mostrou
mais amigável.
- Um casamento. – Disse– A metade das pessoas de linhagem da
Inglaterra está aqui para as bodas da senhorita Edgeworth e o conde de
Kilbourne. Não sei como conseguiram colocar todos na igreja.
O conde de Kilbourne! De novo o nome lhe soava estranho. Mas ele não
era um estranho. E acabava de compreender o sentido do que a mulher
havia dito. Ia se casar? Agora? Naquela igreja? O conde de Kilbourne estava
se casando?
- A noiva acabou de chegar. – Acrescentou a segunda mulher, que tinha
se abrandado diante da ideia de ter uma estranha como público. – Perdeu-
a, que lástima. Estava toda vestida de cetim branco, com uma cauda
enfeitada e um gorrinho e um véu que lhe cobria o rosto. Mas se ficar aqui
um pouquinho, os verá saírem assim que comecem a tocar os sinos da
igreja. Quase certo que a carruagem passará por aqui antes de dar a volta e
cruzar a grade, para que todos possamos saudá-los e dar um bom olhar
neles. Pelo menos, isso é o que diz o senhor Wesley, o hospedeiro, já sabe.
Mas Lily não esperou que lhe dessem mais explicações. Estava
cruzando o prado a toda pressa, abrindo caminho entre a gente reunida ali.
Quase ia correndo quando chegou às portas da igreja.
Neville soube pelo bulício ao fundo da igreja que Lauren tinha chegado
acompanhada por seu avô, o barão Galton. Nos bancos, onde se sentava a
flor e nata da sociedade, assim como várias das famílias mais notáveis da
localidade, produziu-se um reanimar cheio de espera. Várias cabeças se
voltaram para olhar atrás, embora ainda não houvesse nada que ver.
Neville se sentia como se alguém lhe tivesse apertado muito a gravata e
lhe tivesse metido um punhado de inquietas mariposas no estômago,
aflições que lhe acompanhavam com diversas intensidades desde o almoço,
que não tinha sido capaz de tomar, mas se voltou, emocionado, para ver a
noiva. Vislumbrou Gwen, que estava inclinada, ao que parecia ocupada em
endireitar a cauda da noiva. Esta estava, provocativamente, fora da vista.
O vigário, esplendidamente embelezado para a ocasião, permanecia
logo atrás e a um lado de Neville. Joseph Fawcitt, marquês de
Attingsborough, seu primo mais próximo por idade e sempre um amigo
íntimo, pigarreou do outro lado. Neville era consciente de que todas as
cabeças se voltavam agora para a porta, esperando a entrada da noiva. Bem
cuidadoso, que importância tinha o noivo, quando a noiva estava a ponto de
aparecer? Pensou, com um meio sorriso, que Lauren chegava na hora em
ponto. Seria impróprio dela chegar tarde, mesmo que só fosse um minuto.
Mudou de postura quando aumentou o movimento ao fundo da igreja,
inclusive chegou-lhe o som de vozes inadequadamente altas para o interior
de uma igreja. Alguém dizia a alguém com voz seca e urgente que ele ou ela
não deviam entrar.
E então ela cruzou a soleira e apareceu diante da vista de todos os
reunidos na igreja. Exceto que estava sozinha e não estava vestida como
uma noiva, mas sim como uma mendiga. E não era Lauren. A mulher deu
uns passos apressados ao longo da nave antes de deter-se.
Alguma parte remota de sua mente disse a Neville que era uma
alucinação provocada pelo momento. A mulher tinha um aspecto
assombrosamente, dolorosamente familiar. Mas não era Lauren. Sua visão
se obscureceu nas laterais e se afinou no centro. Olhou ao longo da nave
como por um longo túnel –ou como através da lente de um telescópio- à
miragem que estava ali de pé. Sua mente se negava a funcionar com
normalidade.
Alguém, na realidade dois homens, observou quase
desapaixonadamente, agarrou-a pelos braços e a teriam levado para fora da
vista. Mas seu súbito terror de que desaparecesse, de não voltasse a vê-la