Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Da realidade a ação-Ubiratan D'Ambrósio, Notas de estudo de Economia

didática matemática

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 03/01/2011

jose-mario-silva-10
jose-mario-silva-10 🇧🇷

4.8

(35)

11 documentos

1 / 60

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Da realidade a ação-Ubiratan D'Ambrósio e outras Notas de estudo em PDF para Economia, somente na Docsity!

Este livro é uma reflexão sobre a Matemática no mundo mo- demo. Ela é analisada como um instrumento de desenvolvi- mento e de bem-estar, sobre- tudo na América Latina e África. Partindo da afirmação de que “É impossível conceber uma escola cuja finalidade se- ja dar continuidade ao passa- do”, o autor analisa a questão dos currículos, da mentalidade científica, da estrutura e obje- tivos dos cursos de pós-gradua- ção. Uma reflexão oportuna, para que os matemáticos e os educadores, possam chegar a uma ação educacional eficaz. | UBIRATAN DAMBROSIO DA REALIDADE A AÇÃO / REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Nham 510.1 DIGA — al - = Autor: D'Ambrosio, Ubirata as mm Ac. 13744 e | ANYA, & Bi | 0] Sao E | pls gs —— summus editorial | bad DA redlidade a acao : Sao D163d Obra em co-edição com a EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP) Reitor: Paulo Renato Costa Souza Coordenador Geral da Universidade: Carlos Vogt EDITORA DA UNICAMP CONSELHO EDITORIAL Aécio Pereira Chagas, Alfredo Miguel Ozório de Almeida, Attílio José Giarola, Aryon Dall'Igna Rodrigues (Presidente), Eduardo Roberto Junqueira Guimarães, Hermógenes de Freitas Leitão Filho, Michael MacDonald Hall, Jayme Antunes Maciel Junior, Ubiratan D'Ambrosio. Diretor Executivo: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães Rua Cecílio Feltrin, 253 Cidade Universitária - Barão Geraldo Fone: (0192) 39-1301 (ramais 2585 e 3412) 13083 - Campinas, SP DA REALIDADE À AÇÃO REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO (E) MATEMÁTICA A Copyright 6 1986 by Ubiratan D' Ambrosio . o soar En Capa de: n me disait, quand fétais petit: tu verras quand tu seras grand. Je suis un vieux monsieur, je n'ai encore rien vit, Claudio Rocha Erik Satie Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio e sistema, sem o prévia consentimento da Editora, Direitos desta edição reservados por ) SUMMUS EDITORIAL LTDA. Rua Cardoso de Almeida, 1287 05013 — São Paulo, SP Telefone (011) 872-3322 Caixa Postal 62.505 Impresso no Brasil Índice Prefácio à 24 Edição ...ccrrcecceceraaranaasanaanerevo 7 Prefácio na ana io 6 a a ias ES 6 L616VE DER USE jo 6 pp e ui a 9 1. Matemática e Desenvolvimento ... 2. Considerações Histórico-Pedagógicas sobre Matemática e Sociedade ...iicciiciis cce cere renan eraramancraaaas 3. Teoria e Prática em Educação Matemática ,......« SUN 4. Em Busca de uma Teoria de Cultura .. o 4 5. Matemática para Países Ricos e Países Pobres: Semelhanças e Diferenças ...iiicciccccicricanenerea 55 6. Modelos, Modelagem e Matemática Experimental ....... 63 Referências 83 APÊNDICE Integração: Tendência Moderna no Ensino de Ciências ....... 8 A Imfluência de Computadores e Informática na Matemática e seu Ensino .....cccccccerescsscs destes cerercanees 101 basicamente duas classes: aqueles que apóiam integral e entusiastica- menie minhas idéias e aqueles que a rejeitam como um todo. Outros, mesmo sem ter se inteirado do meu trabalho, juntam-se ao laudo muis cômodo dos que atacam, e o fazem de maneira maldosa e às vezes pio- lenta! Tendo sido jogado nesse maniqueismo radical e após analisar os indivíduos envolvidos e suas motivações, sou levado a acreditar que minha proposta educacional representa esperança de redenção para alguns e ameaça para ouíros. A história nos ensina que crítica e censura têm sempre estado presentes na REALIDADE na qual se desenvolve a AÇÃO inovadora e isto nos dá ulento. Assim, acompa- nhado por um número crescente de colegas, continuo na luta contra sistemas educacionais e modelos de desenvolvimento repressivos, inclusive combatendo o seu instrumento discriminatório mais eficaz, que é uma Educação Matemática viciada, obscurantista e mistificada, Ter o livro em segunda edição representa uma vitória, modesta mas significativa, contra as barreiras da censura formal, exercida por aqueles que se sentem ameaçados e pela censura velada da crítica manipulada, Aqueles que, por compartilhar dos mesmos ideais, têm sido agredidos por essas mesmas armas ao longo da sua missão de educadores, repito o que disse um grande mestre: “Per- doname, amigo, de la ocasion que te he dado de parecer loco como yo, huciendote caer en el error en que yo he caido, de que hubo y hay caballeros andantes en el mundo”. Ubiratan D' Ambrosio Prefácio Neste volume damos à Educação Matemática um enfoque con- ceitual, muitas vezes crítico, do que comumente se jaz nos sistemas educacionais. Procuramos abordar todos os aspectos da Educação Matemática, atingindo todos os níveis de escolaridade. Os vários capítulos estão baseados em alguns dos nossos trabalhos anteriores, que abordam temas relacionando Matemática, História e Educação. Na verdade, em ensaios sobre Educação Matemática orientados com um enfoque histórico. A maioria desses ensaios ainda não tiveram divulgação em português e ouiros o foram ou serão publicados em revistas ou utas de reuniões. Com algumas exceções, adotamos uma ordem cronológica na organização dos textos. Como o tema central é muito semelhante em todos Os ensaios, a apresentação cronológica permite acompanhar a evolução de um pensamento com relação à Educação Matemática ao longo de cerca de 10 anos. O capítulo 1, “Matemática e Desenvolvimento”, baseia-se na primeira exposição que fizemos para um plenário internacional do nosso enfoque em Educação Matemática que, fundamentalmente, visa umaigamar a Matemática e seu ensino ao contexto socioculiural em que esse ensino se dá. Naquela ocasião, que foi a 4º Conferência Interamericana de Educação Matemática, realizada em Caracas em 1975, o enfoque provocou as reações mais controvertidas, como até hoje vem provocando, Havia, e ainda há, matemáticos e mesmo educadores matemáticos que vêem a Matemática como uma forma privilegiada de conhecimento, acessível apenas a alguns especialmente dotados, e cujo ensino deve ser estruturado levando em conta que apenas certas mentes, de alguma maneira “especiais”, podem assimilar e apreciar a Matemática em sua plenitude. Nosso enfoque questiona fundamentalmente esse ponto de vista, deslocando u« questão para uma outra, isto é, perguntamos a que Matemática estamos nos reje- rindo. Ao mesmo tempo que dificilmente poderiamos negar que há mentes mais inclinadas para a Matemática, assim como há mentes 9 mais inclinadas para a Literatura ou para a Música, muito na linha do que comumente se chama Inteligências Múltiplas, também não podemos negar que há diferentes manifestações matemáticas, algumas dessas mais ou menos acessíveis a uns ou outros individuos. Isto é, há vários tipos de manifestações matemáticas, igualmente válidas, assim como há várias modalidades de inteligências igualmente respei- táveis e cultiváveis no sistema escolar. É função essencial do educador mutemático entender essas várias modalidades de Matemática e de inteligência e coordená-las adequadamente na sua ação pedagógica. Isso se aplica igualmente à pesquisa e às prioridades nacionais dos vários países. Consegiientemente, o componente sociopolítico permeia todos os nossos trabalhos sobre Educação Matemática. Este capítulo é básico e, como dissemos, é baseado num dos primeiros trabalhos nessa orientação. O texto original foi publicado no volume Educación en las Américas IV, em 1976, com o título “Objetivos e Tendências da Educação Matemática em Países em via de Desenvolvimento”. O capitulo 2, “Considerações Histórico-Pedagógicas sobre Mate- mática e Sociedade” foi publicado, na versão aqui apresentada, na revista Ciência e Filosofia n.º 2 (1980). A primeira versão, mais extensa e detalhada foi objeto de uma conferência no 3.º Congresso Internacional de Educação Matemática, que se realizou em Karlsruhe, Alemanha, em setembro de 1976. Já o capítulo 3, “Teoria e Prática em Educação Matemática”, elabora sobre duas conferências: a primeira parte constitui a confe- rência de abertura no “Seminário de Trabalho sobre Práticas de Ensino de Matemática”, realizado em Rio Claro em 1983 e nunca foi publicada. A segunda parte é uma elaboração da conferência de abertura pronunciada no “HI Encontro sobre Ensino de Ciências no Piaut”, realizado em Teresina em 1984, e também nunca foi publicada. O capítulo 4, intitulado “Em Busca de uma Teoria de Cultura”, baseia-se nas idéias expostas na conferência pronunciada no “H Sim pósio Sul-Brasileiro de Ensino de Ciências”, realizado em Florianó- polis em 1985. O capítulo 5: “Matemática para Paises Ricos e Países Pobres: Semelhanças e Diferenças” é uma elaboração da conferência pronun- ciada num simpósio realizado no Suriname em 1982 e denominado “Mathematics Education for the Benefit of Caribbean Countries”, O texto representa um enfoque que sintetiza muitas das teorizações contidas nos trabalhos anteriores e traz à discussão temas como relação entre alfabetização e “matematização" e o papel da etnomatemática na educação matemática. Embora tenhamos introduzido o conceito de etnomatemática já no ano de 1976 e o termo tenha sido usado em vários trabalhos a partir de então, a linha de pesquisa que resultou no início de uma teorização do conceito de etnomatemática é diferente 10 daquela que caracteriza os trabulhos reunidos neste volume. Assim, deixamos para um volume que será publicado brevemente as dis- cussões que servem de base para uma fundamentação teórica de etnomatemática. No entanto, decidimos incluir o texto sobre Mate- mática para países ricos e países pobres pela sua evidente relação com os capítulos precedentes. O capítulo 6 reúne alguns exemplos que sintetizam muitas das considerações dos capítulos anteriores. O primeiro deles é um exemplo típico de modelagem para solução de problemas. Modelagem é um processo muito rico de encarar situações reais, e culmina com a solução efetiva do problema real e não com « simples resolução formal de um problema artificial. São também apresentadas algumas considerações sobre a máquina de culeuiar e sua utilização nos cursos de cálculo. Alguns exemplos sobre séries e algumas considerações sobre o Cálculo Diferencial Elementar ilustram o enfoque. Partes deste capítulo apareceram em 1977 na revista Contacto, editada pela Cesgranrio, Não abordamos neste livro a utilização de calculadoras e compu- tudores, porém um dos trabalhos selecionados para o Apêndice trata amplamente da questão, No Apêndice incluímos o texto original e integral da conferência intitulada “Integração: Tendência Moderna no Ensino de Ciências”, que pronunciamos no VI Enconiro Nacional de Educação, realizado em São Carlos, SP, dias 20 e 21 de maio de 1975, organizado pela Universidade Federal de São Carlos. O tema é pertinente não só à educação matemática e inclui aspectos mais gerais de ensino de ciências, avaliação e responsabilidade geral do cientista. Achamos conveniente sua inclusão pois representa uma etapa importante na evolução das idéias expostas nos capítulos anteriores e ao mesmo tempo abre espaço para uma ligação muito íntima, infelizmente ainda incompreendida e combatida, da Matemática com us Ciências, uma verdadeira integração. Mantivemos o texto original. Também no Apêndice acrescentamos, por julgar relacionado tanto com os capítulos do texto quanto com o texto do Apêndice. um documento de trabalho, de autoria coletiva, patrocinado pela Comissão Internacional para Instrução Matemática (ICMI), sobre a influência dos computadores e da informática em geral na Matemd- tica e no seu ensino. É uma obra que serve de elemento de reflexão sobre o futuro da educação matemática como resultado da ampla utilização de computadores e que acreditamos completar a provocação implícita no trabalho sobre Integração, selecionado para o Apêndice. Desses dois trabalhos esperamos que figuem algumas direções para se abordar o questionamento básico de “Como será a educação matemática no juturo?”, u temática revelou a sua preocupação sobre o assunto. Muito mais retevante do que cstudar detalhes de currículo ou de metodologia dentro de uma filosofia de ensino de matemática, abstrata e ditada por tradições culturais distantes, parece-me o problema de se exa- minar a fundo questões tão elementares como: porque estudar mate- mática, porque ensinar matemática e como fazer com que essa ma- temática que ensinamos às crianças de 6 ou 7 anos de idade, poucas crianças dessa idade que têm a felicidade, na América Latina, de encontrar uma. escola, tenha uma influência mais direta na me- Jhoria da qualidade de vida dos seus irmãos. Parafraseando Brecht, quando colocou na boca de Galileu as palavras: “Eu afirmo que o único objetivo da ciência é aliviar a dureza da existência humana”, o ensino de matemática ou de qualguer outra disciplina de nossos currículos escolares, só sc justifica dentro de um contexto próprio, de objetivos bem delineados dentro do quadro das prioridades na- cionais. É unanimidade em todos os nossos países que a prioridade nacional absoluta é a melhoria da qualidade de vida de nossos povos. O que é baixa qualidade de vida, situação típica da América Latina, foi muito bem definido pelo Ministro da Educação deste país, Luiz Manuel Pefialver, em sua tese apresentada à Universidade Autônoma de Guadalajara, México: La educación y el Desarrollo Latino-Ameri- cano (5-3-1975). Não examinar o estudo da matemática neste contexto, seria educacionalmente falho e mesmo do ponto de vista do desenvolvi- mento dc nossa ciência, isto é, encarando o ensino puramente do ponto de vista matemático, pelo menos desinteressante. A alegria de ver tal tema proposto pela Comissão Organizadora e a profunda emoção que experimentei ao ser convidado para essa conferência, foram tão grandes quanto as dificuldades encontradas para desenvol- ver o tema c conduzir essa sessão a algumas conclusões. O tema obviamente não é novo, mas o contexto latino-americano em que ele se apresenta é novo e é nosso. Como disse o grande pocta da língua espanhola, Antonio Machado: “Caminante no hay camino, se hace camino al andar” A solução tem que ser encontrada por nós, a solu- são deverá ser autenticamente nossa, e do esquema adotado pelos países desenvolvidos, pouco poderá ser transferido à à nossa realidade. Eu iria mais longe dizendo que mesmo no contexto latino-americano, as diferenças regionais tornam praticamente impossível vislumbrar uma solução que, exceto em suas linhas gerais, possa ser considerada como aplicável a todos os países. E somos então levados a atacar diretamente a estrutura de todo o ensino, em particular a estrutura do ensino de matemática, mudando completamente a ênfase do con- teúdo e da quantidade de conhecimentos que a criança adquira, para uma ênfase na metodologia que desenvolva atitude, que desenvolva capacidade de matematizar situações reais, que desenvolva capaci- 14 dade de criar tcorias adequadas para as situações mais diversas, e na metodologia que permita o recolhimento de informações onde ela esteja, metodologia que permita identificar o tipo de informação ade- quada para uma certa situação e condições para que sejam encon- trados, em qualquer nível, os conteúdos e métodos adequados. Realmente, o que de conteúdo se ensina é de pouca importância no nosso contexto sociceconômico-cultural. De fato, o tipo de mate- mática que se ensina às nossas crianças e que será utilizado no seu ambiente de trabalho e será relevante no seu contexto sociocultural daqui a 20 anos, será absolutamente diferente daquele que se pretende de uma criança em países desenvolvidos. Obviamente, a formação dos chamados quadros de elite, que deverão existir em nossos países, e que serão os responsáveis por grandes avanços científicos que pre- tendemos realizar, terá uma motivação completamente diferente da dos quadros de elite dos países desenvolvidos. Quando se pensa nas origens familiares das futuras elites, vê-se que estas absolutamente dependem de seu recrutamento entre as camadas cultural e economi- camente mais abastadas da população. O ensino, seguindo o conteúdo tradicional, imitado dos países desenvolvidos, é aristocrático, Enquan- to naqueles países representa um processo de seleção que atinge praticamente todas as camadas da população, em nossos países repre- senta um processo de seleção que marginaliza pelo menos 80% de nossas populações. A justiça social a que tanto almejamos, dificil. - mente poderá ser obtida recrutando elites científicas entre as camadas mais abastadas da população. Gostaria de chamar a atenção parã a necessidade da formação de uma elite científica, mencionada répetidas vezes, que julgamos absolutamente indispensável para o desenvolvi- mento de nossos países, dentro de uma justiça social. expressa num. : processo de desaristocratização, e que permitirá a oportunidade de tais elites despontarem em todas as camadas sociais. Naturalmente; um esquema de ensino baseado em conteúdo, e que obviamente se alimenta de treinamento prévio, bein como motivação e conhecimentos adquiridos em ambiente pré-escolar; dificilmente poderá fazer com. que essa elite se desidentifique das classes dominantes em nossos países. Qual seria então a alternativa a um currículo não baseado num conteúdo prefixado? Mais uma vez insistimos na tese do ensino inte- grado como única possibilidade de se desenvolver valores científicos ligados à nossa realidade, e não voltados a uma realidade estrangeira culturalmente colonizante [15]. O processo que o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre chama de eslavo-ianquenização da nossa cultura, é provavelmente muito mais evidente no estudo de ciências, sobretudo na matemática, em todos os seus níveis. De outro modo, dificilmente poderíamos explicar a atitude simiesca com que foram adotados em 15 nossos vários países as modernizações no ensino de matemática, de triste fama. Naturalmente, situar nossa ciência dentro de um contexto inte- grado, talvez cause uma certa perda de autonomia da disciplina, relaxamento dos padrões desgastados, embora tradicionais, de rigor matemático. Mas a sua substituição por um conceito não absoluto de rigor. permitirá que nossa ciência seja acessível e utilizada em vários níveis, em várias situações e não preservada para uma utiliza- ção restrita a alguns poucos iniciados. De fato, assim tem sido, muito a contragosto dos puristas. A intuição física, a intuição do tcenólogo, sobretudo do engenheiro, tem sido responsável pela antecipação de várias teorias matemáticas que só ganharam seu sfatus muitos anos após sua utilização com enorme sucesso pelos chamados “não mate- máticos”. Uma atitude assim parece-me perfeitamente sadia, e conduz a graus de rigor e níveis de abstração que permitirão atingir, no devido tempo, toda a pureza procurada pelos puristas, e acreditamos que mais rapidamente e mais ligada à realidade do que como tradi- cionalmente se faz. Como dizíamos, abrir mão da autonomia e da intocabilidade quase absoluta que tem a matemática no contexto escolar, desde os níveis primários até os universitários, parece-me absolutamente necessário. Talvez fosse mesmo desejável usar a deno- minação “atitude matemática” ao invés de simplesmente “matemáti- ca”, Tal atitude matemática somente pode ser desenvolvida dentro de um contexto integrado de análise da natureza. Dificilmente poderia Galileu ser a seu tempo classificado de matemático, do mesmo modo como não o foram Newton e Leibniz. Isso implica em toda uma reformulação do que é considerado hoje a estrutura formal que deverá ser atravessada, degrau por degrau, por aqueles que querem galgar teorias matemáticas mais avançadas. Gostaria de voltar a insistir que a motivação básica para tudo que fazemos, pesquisa, ensino, enfim toda nossa atividade, é a melhoria da qualidade de vida do homem. Nós, matemáticos, temos um cabedat de conheci- mentos acumulado durante milhares de anos, através de várias cultu- ras, e há uma coincidência surpreendente entre o desenvolvimento matemático nessas várias culturas. Talvez mais do que qualquer outra manifestação do conhecimento humano, a matemática seja universal. Assim sendo, permite uma análise crítica sobre seu papel na melhoria da qualidade de vida, com inúmeras interpretações sobre o que representa a ciência para o bem-estar do homem. Não podemos deixar de mencionar o potencial da matemática para ajudar na solução dos problemas de base do nosso desenvolvi- mento. Mas tal polencial, sentido por todos, se situa cada vez mais na área de mistério e, até certo ponto, misticismo. A comunicação com o grande público, sobretudo com os demais cientistas, tem sido uma preocupação dos matemáticos de todos os países, sobretudo 16 agora que a matemática absorve considerável porção de investimento e fundos governamentais para o desenvolvimento científico e tecno- lógico. Essa comunicação com o grande público e com o público científico em geral, torna-se não só conveniente, mas também neces- sária para os matemáticos. Dar conhecimento ao grande público de como vêm sendo empregados os vários milhões investidos em pesquisa matemática, quais as perspectivas de sua aplicação imediata ou mesmo remota para a solução dos problemas básicos de nossos países e, sobretudo, de que forma estamos contribuindo para a melhoria da qualidade de vida do nosso povo, parece-me obrigação fundamental. Sobretudo uma análise dos fatores que vêm determinando as priori. dades na pesquisa matemática em nossos países, bem como os esfor- sos que estamos realizando para que tal prioridade seja sensível à problemática do desenvolvimento. Essa observação nos traz de volta ao tema principal de nossa intervenção, qual seja nos situarmos no contexto de nosso desenvol- vimento. A própria manutenção do suporte para o desenvolvimento da Matemática Pura, independentemente das aplicações imediatas, será enormemente favorecida pela perspectiva de sua posição nesse contexto: É fato reconhecido e aceito sem hesitações, que o forta- lecimento das várias áreas de pesquisa matemática, tem sido um investimento dos mais relevantes para o desenvolvimento científico e tecnológico de todos os países, permitindo a consolidação de uma infra-cstrutura de base capaz de absorver novos avanços científicos e, consegiientemente, nova tecnologia. Do mesmo modo, tal desenvol- vimento da pesquisa matemática básica tem sido, conforme exemplos encontrados em outros países, um ponto de apoio dos mais fundamen- tais para a adoção de novas opções socioeconômicas, que se tradu- zem numa efetiva melhoria da qualidade de vida e do bem-estar dos povos. Dificilmente poderíamos adotar novos modelos previdenciários adeguados à nossa realidade, ou procurar novas opções de produção e distribuição de energia, ou propor medidas de proteção ao meio ambiente, ou adotar esquemas de produção e distribuição de gêneros alimentícios, ou ensaiarmos modelos econômicos mais rendosos, sem uma base científica solidamente construída sobre conhecimentos ma- temáticos básicos. A não aceitação desses fatos, nos colocaria indu- bitayelmente na qualidade de receptores de modeios estrangeiros, em condições quase inviáveis de propor novas alternativas e opções e de procurar para o nosso país um modelo próprio c autêntico, Sem dúvida, quando falamos em desenvolvimento devemos nos ater ao contexto regional e temporal. As prioridades desenvolvimen- tistas mudam com o passar do tempo, mudam de região pata região. O não conhecimento do fato de que as prioridades mudam e são ditadas pelo momento histórico do país ou da região a que elas se 17 contra nossa ciência, uma supervalorização de sua estrutura rigorista e seu formalismo faz com que as possibilidades de aplicação sejam mais e mais remotas e levadas a um nível extremamente elevado. Nossa condição de receptor de modelos desenvolvidos alhures, colo- ca-nos não somente numa defasagem entre as várias possibilidades de aplicação matemática a problemas de base que afetam o nosso desen- volvimento, mas sobretudo uma situação de quase absoluta inade- quação das teorias desenvolvidas em outro ambiente e em outra situação, aos nossos problemas mais fundamentais. Enquanto um matemático aplicado da categoria de Harold Grad diz que “se a história é um guia, essas novas estruturas matemáticas são o que se deve esperar que dará os fundamentos da Matemática Pura para as próximas gerações” [22], quando se refere a problemas matemáticos que surgem cm pesquisa sobre fusão termonuclear controlada, pode- remos dizer mais uma vez que se a história é um guia, dentro de alguns anos algumas das nossas faculdades de ciências na selva ama- zônica estarão estudando essas novas estruturas matemáticas com vistas à aplicação em problemas desse tipo. Ao mesmo tempo em que provavelmente não haverá um especialista em condições de aplicar as modernas técnicas de previsão e controle de terremotos, que fazem com que ainda hoje ocorram tragédias. O argumento em contrário procura nos convencer que não é possível atingir um grau de sofisti- cação matemática útil, capaz de atacar tais problemas, sem passar pelas várias etapas de construção de uma teoria matemática que se traduz em 10, 15 ou 20 anos de formação universitária matemática, isto é, teoria, teoria, teoria até que se esgote a capacidade criativa do jovem pesquisador. Tal argumento não é novo e me traz à memória a refutação ao ensino público estabelecido na França após a Revolução Francesa, feita por N. Déchamps na sua exaustiva obra Les Sociétés Secrêtes et lu Société [20], quando dizia que ninguém deveria esquecer que foi o ensino privado paroquial que formou os Copérnicos, os Galilcus, os Newtons, os Leibniz, os Pascals, os Descartes e tantos outros cientistas pré-revolução. Realmente, a pobreza de tal argumento rios conduziria a admitir o ridículo de que o acúmrlo de conhecimentos adquiridos pela humanidade só é atingido retraçando a história de toda a obtenção desse conhecimento. É evidente que o acesso ao conhecimento mais recente, ao conhecimento já elaborado pelas várias sociedades desenvolvidas e industrializadas, é absolutamente essencial para nós. No Simpósio sobre Ecossistemas patrocinado pelo SIAM (Institute for Mathematics and Society) e pela National Science Foundation em Alta, Utah, em julho de 1974, o biólogo Lawrence B, Slobodkin da State University of New York at Stony Brook, ela- borou 10 pontos que ele gostaria que os matemáticos não fizessem quando trabalhassem em biologia populacional [28]. Entre esses pontos, 20 diz: “Eu gostaria que os matemáticos teóricos parassem de redesco- brir a roda.” Realmente, a mesma observação se aplica a nós. Abso- Intamente não se trata de redescobrir teorias, não se trata de refazer teorias. Simplesmente se trata de utilizar adequadamente as teorias matemáticas já existentes para a solução de problemas de base em nosso desenvolvimento. A utilização de teorias avançadas e sofisticadas, exige um enorme esforço metodológico para tornar essas teorias acessíveis desde o início da carreira do cientista. Aqui me parece estar o ponto crucial de nossa argumentação. Creio ser absolutamente insustentável a argu- mentação de gue a Matemática deve ser construída como um edifício lógico em que se Juperpõem conceitos, em que se juperpõem resul- tados, e que « sofisticação atingida depende realmente de quão aito se vai nessa superposição de tijolos para construir o edifício. É absolutamente essencial, e eu diria fundamental, que possamos utilizar técnicas sofisticadas na solução de problemas. que são nossos e que não interessarão a outros que não nós, que não serão objeto de preo- cupação de outros que não nós, e que não fazem a humanidade sofrer que não a nós. Como dizia, é absolutamente essencial que ata- quemos os problemas de metodologia para trazer esse conhecimento avançado e sofisticado ao nível de sua utilização quase imediata. De fato, acelerar a formação de nossos jovens pesquisadores é da mais alta importância para o nosso futuro científico e tecnológico. Tnfeliz- mente, nota-se a superposição de uma estrutura de pós-graduação a uma estrutura universitária, aumentando o tempo de formação do indivíduo muito mais do que a nossa realidade exige. A grande maio- ria dos problemas que poderiam melhorar consideravelmente a nossa qualidade de vida, são problemas que poderiam ser atacados por um jovem no início de sua carreira universitária. No entanto, nessa idade, com toda criatividade e idealismo característicos do jovem, o estudante é sujeito a uma construção teórica fundada na metodologia curricular desgastada das universidades americanas e européias, e gue de nenhum modo o conduz a uma apreciação des problemas em que a sua contribuição seria tão essencial, Como se vê, isso afeta profundamente a estrutura curricular de nossas escolas, sobretudo universitárias. Digo sobretudo porque as mesmas observações podem ser feitas com relação a todos os níveis de escolaridade. Nos primeiros níveis de escolaridade, 1.º e 2.º graus, o que mais se deveria desen- volver é a sensibilidade para apreciar esses problemas. É a motivação para esse gênero de raciocínio. Já nos estudos secundários superiores e universitários, a participação dos jovens pode ser relativamente efetiva na solução dos problemas. * Vamos examinar alguns dos aspectos do que seria essa estrutura universitária adequada a permitir que os jovens se encontrassem rapidamente em contato com os problemas de base. No que se refere 21 à matemática, o problema poderia se transformar num outro, isto é, perguntando-se como a matemática se transforma em algo que possa ser mais imediatamente utilizável. Esse processo de transformação é aparentemente misterioso e dentro dos esquemas tradicionais, de rendimento muito baixo. Muito pouco do que se faz em matemática é transformado em algo que possa representar um verdadeiro pro- gresso no sentido de melhorar a qualidade de vida. É inadmissível que aceitemos esse fato sem contestação, como um fato consumado, e não façamos esforços para mudá-lo. Poderíamos ir mais longe, di- zendo mesmo que muito da matemática que se faz, é insuficiente para atacar alguns dos problemas básicos que afetam a humanidade. Na verdade, existem inúmeros problemas de biologia que não podem ser resolvidos por falta de uma matemática adequada. A maioria dos problemas de sociologia, quando se tenta quantificá-los, esbarra na falta de um instrumento matemático adequado. O mesmo se pode dizer de Economia, embora realmente a Economia talvez seja a mais matematizada das ciências chamadas não naturais. Paradoxalmente, cada dia a quantidade de matemática: existente e criada, é maior. À quantidade de matemática sendo criada é fabulosa, o que a torna praticamente inacessível ao jovem matemático. Para mudar esse estado de coisas, exige-se medidas corajosas e realmente arrojadas, Tradi- cionalmente, o ensino de matemática é feito pelo acúmulo de conteú- do. O que se faz é acumular conteúdos e um jovem que entra num 1.º ano universitário faz disciplinas que não diferem essencialmente do que se fazia há cem anos atrás. Cálculo e Geometria Analítica feitos nos cursos universitários são praticamente os mesmos que se faziam no século passado, seguindo praticamente os mesmos passos e levando, senão o mesmo, ainda mais tempo, com o argumento de que os estu- dantes que agora entram nas universidades são menos preparados do que os da geração anterior. O mesmo quadro se repete no 2.º ano, no 3.º ano, no 4.º ano e na pós-graduação, onde os esquemas tradicionais estão ali implantados. Os requerimentos básicos de um mestrado hoje em dia não diferem essencialmente dos requerimentos básicos para um mestrado nos E.U.A. há 30 anos atrás. No máximo, pode-se introduzir algumas tinturas de algo moderno, sobretudo nomenclatura. Na realidade, o aluno passando por um currículo universitário de matemática não sentiu e não recebeu o impacto do mundo em que ele vive. Não sentiu quais são os problemas básicos que determinam a estrutura social à qual ele pertence. Ocasionalmente se vê alguma tentativa de melhorar o progtama modificando ligeira e superficial- mente algumas ementas de disciplinas e os programas dos exames de qualificação. Vamos discutir a seguir o que seria uma alternativa universitária que melhor respondesse à preparação do matemático com vistas ao desenvolvimento, e sensibilizado pelos problemas que afetam a sua 22 comunidade. De fato, o ensino de conteúdo matemático, e o mesmo se aplica a qualquer outra disciplina, deveria se limitar ao mínimo de linguagem que permitisse a esse indivíduo a comunicação com outros cientistas. Na verdade, linguagem que permita a ele ter acesso a conhecimento aprofundado e. especializado, depositado em alguns bancos de conteúdo, tipo biblioteca, mas dirigido essencialmente a um público que necessita de informação rápida e direta. Tal lingua- gem fundamental e que seria adquirida em muito pouco tempo, num semestre ou no máximo um ano de ensino universitário tradicional, permitiria ao aluno identificar trabalhos, livros & mesmo teorias onde tópicos que lhe seriam necessários poderiam ser encontrados. O argumento imediatamente contraposto a que já nos referimos, é que é impossível chegar a uma teoria avançada em matemática sem se construir a base necessária com o devido rigor para que se chegue aquele ponto. Mais uma vez, vamos contra a opinião generalizada, O tratamento rigoroso de matemática é um mito contra o qual devemos lutar. Em verdade, é essencial que preocupações de rigor não inter- firam com as bases intuitivas da matemática. Entendemos que sensi- bilidade para rigor matemático é algo que sc adquire, que se sente após alguma vivência com matemática, e que surge naturalmente com o desenvolvimento do que poderíamos chamar “intuição para rigor”, Desse modo, tratar os diversos assuntos que aparecem em matemática com o devido “rigor” pode neutralizar o que nos parece a função essencial do ensino de matemática, bem como de qualquer outro assunto. A ênfase estaria. em despertar no estudante curiosidade e espírito inquisitivo que, aliado a algum gosto pelo assunto, o moti- vará a procurar tratamento mais aprofundado e mais rigoroso. Na- turalmente, esse tratamento será apresentado em escalas de rigor, que por sua vez estimularão tratamentos ainda mais profundos e ainda mais rigorosos. O quanto de profundidade e de rigor é atingido no tratamento de qualquer assunto matemático, depende única e exclu- sivamente do indivíduo que está se exercitando na proeura desse assunto, Jamais poderá ser determinado por condições externas, im- posto por um currículo rígido, Realmente, o quanto um indivíduo aprende na escola é de menor importância. De muito menor impor- tância do que a capacidade que ele adquiriu de aprender coisas novas quando devidamente motivado. Realmente, as várias teorias e resul- tados matemáticos obedecem uma dinâmica tal que a sua validez desaparece quando inserida num contexto abstrato. Superada esta primeira fase de linguagem, a ênfase na formação universitária passaria para o desenvolvimento de motivação através de uma técnica de formular e identificar problemas, em situações as mais diversas. Lembro-me de uma estória de aventuras em que o anti- «herói foi aprisionado e condenado à morte por uma tribo de indígenas. Antes de ser executado, deveria explicar ao chefe a utilização do 23 CAPÍTULO 2 Considerações Histórico - Pedagógicas sobre Matemática e Sociedade | Neste capítulo vamos dar um esboço de análise sociológica dos rumos que tomam a pesquisa e o ensino matemático, com motivação na socicdade em que estão inseridos. Este capítulo é uma elabora- ção de alguns conceitos apresentados no 3.º Congresso Internacional de Educação Matemática, em Karlsruhe, Alemanha, em agosto de 1976 [11]. Distinguimos várias formas de aquisição de conhecimentos, que podem servir como guia para uma breve análise histórica. Dis- tinguimos experiências puramente vitais e instintivas, através das quais a criança aprende a sobreviver e a continuar a espécie, e que têm sido tradicionalmente colocadas sob a orientação das famílias ou estruturas do tipo familiar. Distinguimos ainda experiências do gênero sociocomportamental, pelas quais a criança adquite atitudes básicas de conduta e os primeiros valores morais, o que também tradicional- mente toma lugar em estruturas do tipo familiar. São os componentes básicos do que. Margatet Mead chama “modelo pós-figurativo” [33], o qual encontramos presente em praticamente todas as sociedades. Distinguimos igualmente dois tipos de educação, de- caráter mais formal, que classificamos como artesanal ou profissional e contem- plativa ou especulativa. Na primeira categoria colocamos os modelos, se assim podemos chamá-los, espartan = romano, bem como a estru- tura tradicional de serviço público na China imperial. Colocamos ainda nessa estrutura as culturas de iniciação, que prevalecem até hoje, principalmente nos países da África. Ao mesmo tempo, distin- guimos nessa forma de educação uma intromissão do que chamamos “educação contemplativa”, c que é representada inicialmente por práticas religiosas, motivada pela busca do entendimento ou da com- preensão do lugar do homem no universo, e que certamente se mani- festa mais intensamente como produto de estabilidade econômica e social. Na análise dessas duas formas de educação, identificamos a gênese das idéias científicas, como foi bem claramente posto por Pierre Duhem ao dizer que é impossível identificar um ponto de 27 partida bem definido para as idéias científicas, embora neste começo um tanto nebuloso possamos identificar exemplos nos quais as duas estruturas de educação juntam esforços num conhecimento refreado. Por outro lado, podemos distinguir a preservação das duas estruturas com raízes na sociedade de classe. Não vamos nos estender no estudo, extremamente atrativo e necessário, do nascimento das idéias cientí- ficas, Referimos o leitor ao excelente livro de Bernal [6], e à análise por Menninger [34], no caso especial da Matemática. Como em todos os ramos do conhecimento, os primórdios da Matemática são parte de um contexto, embora provavelmente seja mais fácil! identificar, na Matemática, o relacionamento entre as duas estruturas educacionais que mencionamos acima. As primeiras noções de palavras, números, numerais e símbolos numéricos, usando a ter- minologia de Menninger, mostram fortes componentes práticas, bem como características lingiúísticas que são, na verdade, uma reflexão do aspecto contemplativo, como por exemplo, as seqiiências: 1, 2, muitos; singular, plural, dual, que se encontram na gramática grega, sempre colocando o 3 como um passo através do limiar da compre- ensão. Do mesmo modo, o trabalho de Claudia Zaslavsky, sobre o processo de contagem na África, ilustra um modelo definitivo de considerações práticas nas culturas africanas, que evolvem para outras formas de considerações mais contemplativas [48]. Como R.L. Wilder bem menciona, a componente cultural que mais certamente vamos encontrar entre todos os seres inteligentes e construtores de uma cultura é a existência do processo de contagem [47]. Isto pode ser um argumento para deslocar o processo de contagem como um dos principais componentes da educação matemática, quando a con- sideramos com objetivos puramente intelectuais. Seria interessante estudar comparativamente o desenvolvimento da Matemática em civi- lizações onde o ábaco era muito usado, bem como nas civilizações pré-colombianas, sobretudo entre os incas. Embora aceita como parte integrante da aritmética teórica na cultura ocidental, a aritmética ordinária, que entendemos simplesmente no sentido de fazer cálculos, não é mais que um mecanismo, e como tal, de menor importância do que tem sido dado a ela desde os tempos medievais, quando foi incorporada como parte central dos estudos elementares de Matemá- tica. Com relação a isso, o argumento de Rijkitaro Fujisawa, contido como um apêndice ao excelente trabalho sobre Matemática na China e no Japão, publicado por Yoshio Mikami, é altamente ilustrativo sobre o processo de adoção da prática de calcular nas escolas japone- sas durante a reforma escolar em 1868, em que o ábaco foi errada- mente relegado a uma importância secundária [35]. De fato, enquanto menos ênfase cra colocada sobre a capacidade de calcular pelos ma- temáticos gregos, esse não foi o caso com a civilização romana. A enorme ênfase dada à teoria dos números pelos pitagóricos e outros, 28 que foi levada até as escolas medievais, deve ser separada da habili- dade de calcular, como muito bem esclarece Platão no livro VII da República. Também Aristóteles, que atribuía aos números uma inter- pretação física, por razões muito claramente discutidas por Morris Kline em seu excelente Mathematical Thought from Ancient to Modern Times, notamos um papel de menor importância, quase não mate- mático, para a habilidade de calcular [27]. Na verdade, os gregos transmitiram dois ramos da Matemática desigualmente desenvolvidos: uma geometria sistemática e dedutiva, com substanciais considerações sobre teoria dos números, e uma aritmética pouco desenvolvida, heu- rística e empírica, baseada essencialmente em práticas de calcular, não consideradas propriamente como Matemática. Esse ramo foi perseguido pelos romanos, que fizeram uso prático da medição e contagem, desenvolvendo muitas formas de ábacos e de contagem por dedos. Essa técnica, que de acordo com Menninger é uma verda- deira máquina de calcular, parece ter sido passada de geração em geração por tradição fora do contexto escolar, Nenhum texto, descre- vendo a capacidade de contar por dedos ou por ábacos, é parte do legado acadêmico, e essa habilidade se encontra igualmente entre analfabetos, não requerendo qualquer forma de escola no sentido tradicional. Isso é evidenciado pela seguinte observação de Fibonacci, que mostra a dicotomia entre a Matemática e a habilidade de calcular ou fazer operações: “Se esses números, inventados pelos hindus, e a sua anotação posicional devem ser dominados completamente, é necessário aprender a contar nos dedos.” Interessante notar também, do mesmo Fibonacci, o reconhecimento da numeração posicional como uma verdadeira máguina de calcular: “Os 9 números dos hindus são: 9,8,7,6,5,4,3,2, 1,e com eles e com o sinal O, qualquer número desejável pode ser escrito,” o que foi incorporado ao livro sobre aritmética escrito por Sacrobosco, e considerado o trabalho mais conhecido descrevendo operações com numerais arábicos até o séculc XVI, No entanto, fatores socioeconômicos foram na verdade deci- sivos na utilização dos numcrais c da notação posicional como um componente da escola pós-medieval. De fato, tal utilização foi intro- duzida não por ser mais prática ou mais eficaz que a utilização de dedos ou de ábacos, mas simplesmente para permitir um comércio mais eficiente com outros povos pelas repúblicas marítimas italianas. Isso aconteceu em várias disciplinas, e de fato o que era domínio da educação artesanal ou profissional, entrou e dominou toda a estrutura escolar no momento em que a oportunidade para a educação começot a se espalhar, universidades foram fundadas, e a tecnologia estava lançando as bases para a revolução industrial, principalmente devido à introdução experimental e consegiientemente de uma quantificação da ciência como método por excelência das ciências naturais. As novas forças da Renascença e da Reforma combinaram-se para fazer 29 | volver na primeira metade do século seguiu o ideal de colocá-la num contexto Jógico-dedutivo, Esse contexto ideal, que domina a Matemá- tica que se desenvolveu durante esse século, encontra-se muito bem representado pelo tratado de -N. Bourbaki. De fato, muito do que dominou a pesquisa matemática nesse período pode ser traçado ao início do século, quando D. Hilbert enunciou seus famosos proble- mas, que seriam o foco da pesquisa matemática do século XX. No entanto, não podemos concordar integralmente com o otimismo mos- trado por Hans Freudenthal, quando diz que “nada é menos ver- dade que a Matemática moderna é somente uma versão formal da Matemática antiga: não apenas velhos problemas foram resolvidos nesse século, mas a Matemática também foi enriquecida por disci- plinas absolutamente novas” [21]. Na verdade, não reconhecemos idéias novas, realmente profundas, em Matemática, quando compa- tadas com outras ciências, e talvcz o maior impacto comece a surgir com a possibilidade de cálculos rápidos, o que era absolutamente impossível de ser feito sem a utilização de equipamento eletrônico. Da mesma maneira não vemos alteração profunda no modo como são conduzidas as escolas. Há uma mudança fundamental, que é a aceitação universal do conceito de educação de massa, mas o ataque à problemática da cducação é praticamente o mesmo, baseado num ideal de fazer melhor o que gerações anteriores fizeram. Adotando qualquer das teorias modernas de aprendizagem, mudando currículo, inventando novas metodologias e utilizando tecnologia educacional estamos sempre focalizando a educação na esperança de que as crian- ças aprendam, que as crianças se comportem de um certo modo, e que as crianças ajum de acordo com um certo modelo. De fato, a educação moderna está sempre focalizada na sua competência para fazer o que chamamos no início deste trabalho “educação vital, edu- cação social e educação artesanal” c todas combinadas numa certa estrutura. Há uma faltá enorme de conceituação contemplativa, por- tanto criativa, num contexto muito mais ligado à realidade, como está muito bem ilustrado com as observações de H. E. Gruher no seu esiudo psicológico de criatividade científica, analisando o modelo educacional a que foi submetido Darwin e as próprias observações do cientista [23]. Paradoxalmente, enquanto há um excesso de conser- vantismo em matemática e em educação durante a primeira metade do século, há uma profunda riqueza de novas direções que a ciência e a sociedade estão tomando. Sem dúvida, estamos vivendo uma nova revolução científica, com novos campos de pesquisa sendo abertos, novos instrumentos para exploração da natureza, tanto em dimensões enas quanto grandes, dimensões estas que a imaginação do homem. mente pode seguir. Campos até agora considerados como per- tencentes ao domínio da religião estão começando a se estabelecer como disciplinas científicas, como por exemplo a parapsicologia. 32 Técnicas até agora consideradas do domínio da ficção científica estão sendo utilizadas em laboratórios, como por exemplo a criação da vida. Transplante de órgãos c raios laser estão sendo incorporados na prática do dia-a-dia, e os grandes computadores da década de 40 estão hoje reduzidos ao tamanho de um maço de cigarros. Como bem disse John Kemeny, da Dartmouth University e um dos primeiros colaboradores do esforço nuclear americano, “éramos 20 cientistas, trahalhando 20 horas por dia, 6 dias por semana, por um ano inteiro, para fazer o que um estudante de hoje pode fazer em uma tarde com uma calculadora de bolso de 15 dólares”. Do mesmo modo, a sociedade tem testemunhado mudanças profundas nessa primeira metade do século. Os acontecimentos desse período mostram uma transição de um tipo de sociedade para outro, de uma ordem econômica para outra, e uma cada vez maior interação entre ciência e sociedade. O equilíbrio de forças que resultou do desafio do sistema capitalista pelo sistema socialista, desafio este resultante das próprias contradições do capitalismo, facilitou o reco- nhecimento de que uma maioria da população mundial vive em condições que eram dificilmente imagináveis no início do século. A partir do último século, as políticas exterior e colonial das grandes potências foram, em grande parte, ditadas pela necessidade de asse- gurar uma boa parte do mercado mundial para produção dos cres- centes complexos industriais. Largamente favorecidas pelo equilíbrio de forças que surgiu das duas guerras mundiais, várias nações con- seguiram independência e entraram no quadro do equilíbrio mundial, desempenhando um papel crescentemente importante. Em primeiro lugar, por haver atingido independência política, essas nações lutaram pela independência econômica e cultural e partiram para a procura de sua identidade moral e cultural, até certo ponto esquecida, É desnecessário recapitular as mudanças do panorama econômico mun- dial resultantes desse novo quadro político. O mesmo se pode dizer das atitudes e valores da sociedade como um todo, com enormes reflexos na escola. Mas insistimos no quadro de profunda mudança social, política, econômica e comportamental que estamos atraves- sando, mesclado com mudanças não menos profundas da ciência e da tecnologia, e a resultante necessidade de questionar os valores morais que necessariamente desempenham papel fundamental nessa mescla. Matemática, e consequentemente Educação Matemática, são parte desse complexo. 33 CAPÍTULO 3 Teoria e Prática em Educação Matemática Um dos preliminares que se coloca quando se tenta abordar este tema é simplesmente perguntar se efetivamente “Educação Mate- mática” é, em si, uma disciplina. Sem dúvida, Educação Matemática poderia ser caracterizada como uma atividade Inultidisciplinar, que se pratica com um objetivo geral bem específico — transmitir conheci- mentos e habilidades matemáticas -— através dos sistemas educativos (formal, não formal e informal). O questionamento se põe então em outros termos. Como, e o que, são esses conhecimentos e habilidades matemáticos. Não estariam eles na mesma categoria do “falar”? Ha- veria uma “educação para falar”, no sentido acima, isto é, transmitir através dos sistemas educativos, a capacidade de falar — isto é, uti- lizar a linguagem como meio de comunicação? Naturalmente, pode- mos pensar numa educação psitácica (psitacismo: repetição de frases ou palavras desprovidas de sentido; psitacídeo: papagaio). Mas a capacidade de se comunicar através de sons, palavras e frases arti- culadas é outra coisa. E isso se aprende (ver, por exemplo, o filme “O Enigma de Kasper Hauser” de W. Herzog) e representou um importante estágio na evolução da humanidade (ver, por exemplo, a linguagem criada por Anthony Burgess para o filme “A Guerra do Fogo”). Por que a comparação de Matemática com o falar? Esperamos destacar assim um ponto fundamental: o fato de Matemática ser uma linguagem (mais fina e precisa que a linguagem natural) que permite ao homem comunicar-se sobre fenômenos naturais. Consegiientemente, ela se desenvolve no curso da história da humanidade desde os “sons” mais elementares, e portanto . intimamente ligada 'ao contexto socio- cultural em que se desenvolve — por isso falamos em matemática grega, matemática hindu, matemática pré-colombiana. Daí a relevân- cia da referência ao filme “A Guerra do Fogo”. Ainda à semelhança da linguagem, aprende-se Matemática, melhor diríamos absorve-se Matemática, por um processo natural, poderíamos mesmo dizer “os- 35