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Este documento discute a importância da manufatura de bebidas ligeiramente alcoólicas na cultura humana, com ênfase nos grupos tupi-guarani. Ele explica como as bebidas fermentadas podem mobilizar mão de obra, criar relações sociais e gerar poder político. Além disso, o texto compara vasos etílicos arqueológicos e etnográficos para preparo e consumo de bebidas fermentadas entre as tradições tupi-guarani e polícroma da amazônia. O documento também aborda a hipótese de que os elementos cerâmicos comuns entre essas tradições podem ser resultado de contatos entre grupos de língua arawak.
Tipologia: Trabalhos
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Beers are a vital subsistence food. Their consumption can also place the cos- mological participant in closer contact to the hidden space. (Stahl, 1984 , p. 65 ) Outra característica que se tornou quase universal, porque satisfaz a uma necessidade biológica, é a manufatura de bebidas ligeiramente alcoólicas. (Meggers, 1987 , p. 145 ) drunkness also expresses culture in so far as it always takes the form of highly patterned, learned comportment which varies from culture to culture: pink elephants in one region, green snakes in another. (Douglas, 1987 , p. 4 )
este artigo será discutido o consumo de bebidas fermentadas, um há- bito amplamente difundido nas sociedades indígenas amazônicas. Um tema extenso, que possui uma série de campos analíticos (e.g. cognição, saúde, sociabilidade), muitos já razoavelmente debatidos, em especial pelas ci- ências médicas e pela antropologia. Na arqueologia, esse é um tema bastante recente (ver exceções em Braidwood, 1953 ; Katz; Voight, 1986 ), tendo sido negligenciado pela escola processualista norte-americana e pouco aprofundado até hoje na arqueologia brasileira (vide exceção em Neumann, 2010 ; Noelli; Brochado, 1998 ). O tema dos fermentados não é, de forma alguma, um assunto escolhido de forma aleatória dentro de uma imensidão de possibilidades. Trata-se, sim, para alguém que estuda cerâmica arqueológica, de algo que está presente em (quase) todos os lugares da Amazônia há milhares de anos. Foram os potes que trouxe- ram o assunto à tona, o que também significa que o viés ceramológico deixará de fora da discussão outros elementos que alteram a mente, comuns a muitas sociedades indígenas sul-americanas, como o tabaco, a coca e o ayahuasca. Tampouco se pretende argumentar que se trata da resposta para todas as questões da arqueologia amazônica, um optimum climático ou uma várzea fértil pós-moderna (ver adiante). Pretende-se apenas discutir um elemento central nas transformações das sociedades amazônicas através do tempo, um elemento que
potencializa o acesso à comunicação com outros grupos e com o lado obscuro, possibilita a compreensão de muitas questões não evidentes, podendo tanto as- segurar a estabilidade quanto levar a mudanças (Jennings; Bowser, 2009 , p. 2 ). Isto é, não se defende que a produção em grande escala de fermentados levou a um episódio de formação (o período Formativo) das sociedades indígenas amazônicas, e sim a possibilidades ilimitadas de transformação (Goldstein et al., 2009 , p. 141 ). O ser humano não é o único animal que se aproveita dos benefícios do álcool. Durante uma série de experimentos foi observada uma propensão à em- briaguez nos chimpanzés dado o livre acesso a bebidas. Constatou-se também que os machos consumiam aproximadamente o dobro do que consumiam as fêmeas, chegando a beber uma quantidade equivalente a quatro garrafas de vi- nho em um dia. Com o passar do tempo, percebeu-se que as bebedeiras ficaram padronizadas (com horários mais ou menos fixos), mas os chimpanzés perma- neciam quase sempre embriagados. Testes com ratos mostraram resultados se- melhantes: os animais se reuniam em torno da fonte de álcool sempre algum tempo antes do horário de serem alimentados. A cada três ou quatro dias, os ratos tinham um pico de consumo (McGovern, 2009 , p. 10 ). Além da sensação prazerosa que causa, o álcool pode aliviar a dor, parar uma infecção, saciar a fome e curar doenças. Antes do advento da medicina moderna, o álcool era o principal paliativo do ser humano. No caso da cerveja, o processo de fermentação aumenta o conteúdo proteico e vitamínico (especialmente de vi- tamina B) encontrado naturalmente no produto-base e adiciona sabor e aroma a esse produto (McGovern, 2009 , p. 267 ). A utilização de água fervida no processo de fermentação (que acelera esse processo) permite que se beba um líquido mais seguro do que a água, sujeita a contaminação por dejetos humanos até nas áreas mais escassamente habitadas (Standage, 2005 , p. 15 ). Mesmo quando a água não é fervida, o próprio álcool ajuda a eliminar as impurezas. A cerveja pode ser obtida por meio de uma série de grãos, tubérculos e frutos. As frutas, por exemplo, especialmente em climas tropicais, podem fer- mentar ainda na árvore, devido ao calor e à umidade (McGovern, 2009 , p. 7 ). Esse fenômeno é aproveitado tanto por seres humanos quanto por outros ani- mais frugivorostíferos, como passarinhos e macacos. Outra fonte antiga de ál- cool utilizada pelo ser humano é o mel, que fermenta se armazenado em água, transformando-se em hidromel. Pode-se especular, então, que qualquer porção mal armazenada de frutas ou mel, sujeita à umidade (e.g. água da chuva), pode- ria ter fornecido bebidas alcoólicas de forma fortuita na Antiguidade. Entretan- to, frutas são sazonais e nem sempre se encontra mel em grande quantidade, o que os torna fontes inconstantes de fermentados (Standage, 2005 , p. 15 ). Mesmo inconstantes, presume-se que os fermentados estavam presentes na “revolução cognitiva” que o ser humano atravessou nos últimos trinta mil anos, como nas pinturas rupestres criadas durante o Paleolítico Superior euro-
Mesmo sendo difícil avaliar o papel dos fermentados na domesticação dos alimentos, sabe-se que nos últimos três mil anos eles estão (quase) sempre pre- sentes. A cerveja servia como moeda (líquidos, sendo facilmente divisíveis, são ótimas moedas), pagando inclusive os trabalhadores que construíram as pirâmi- des do Egito. As placas de barro contendo os primeiros escritos do cuneiforme ( 3500-3100 a.C.), a mais antiga forma de escrita do mundo (protossumérios ou protolamitas da Mesopotâmia), apresentam uma significativa quantidade de vasos simbolizando a cerveja, o que indica que ela fazia parte da redes de trocas locais e coletas de impostos 3 (McGovern, 2009 , p. 62 ; Standage, 2005 , p. 29-37). Além de servir como pagamento, o que ocorre até hoje em sociedades indígenas amazônicas, os fermentados possuem outros valores simbólicos. Assim como um aperto de mão sinaliza que a mão não está armada (é um sinal de paz), o compartilhamento de um pote de bebida indica que essa não está envenenada nem é imprópria para o consumo (Standage, 2005 , p. 18 ). Em outras palavras, di- vidir uma tigela de fermentado é um símbolo universal de hospitalidade (Jennin- gs; Bowser, 2009 , p.4-5). Da mesma forma, oferecer uma festa com uma grande quantidade de fermentados pode ser um sinal de status. Segundo Hayden ( 2001 , p.29-30), uma festança alcoólica pode: (I) mobilizar mão de obra; (II) criar re- lações de cooperação dentro de grupos ou entre grupos; (III) criar relações de cooperação entre grupos sociais diferentes; (IV) criar excedente (possivelmente lucro); (V) atrair potenciais parceiros, mão de obra, aliados ou trocas de bens, assim como divulgar o sucesso do grupo; (VI) gerar poder político (controle de recursos e mão de obra) por meio da criação de uma rede de dívidas recíprocas; (VII) levar ao uso do excedente produzido pela população geral para a manu- tenção de uma elite; (VIII) propiciar pedidos de favores; (IX) compensar por transgressões (cf. Jennings; Bowser, 2009 , p.5-6, para conclusões semelhantes). Alguns desses aspectos serão abordados adiante, no contexto amazônico. Primeiro, será utilizado um texto como um exemplo ilustrativo da proposta interpretativa. Em seguida, será discutida a possível correlação entre grupos de língua Tupi-Guarani e a chamada Tradição Polícroma da Amazônia (Brochado, 1984 , 1989 ; Lathrap, 1970 ; Noelli, 1996 ) à luz das discussões sobre fermenta- dos, incluindo uma comparação preliminar dos vasos (arqueológicos e etnográ- ficos) para preparo e consumo dessas bebidas. Apesar da dificuldade em inserir vasos de diferentes períodos nas categorias “tigela” e “panela” (Brochado, 1991 , p. 43) e da desproporção nas amostras dos diferentes grupos citados, esse esboço comparativo é válido para pensar nas semelhanças e diferenças entre esses gru- pos.^4 Essa proposta é mais voltada a abrir campos explanatórios do que fornecer conclusões substanciais sobre qualquer um dos temas tratados.
Durante os anos 1956-1957, o antropólogo americano Michael Harner passou uma longa temporada entre os Jívaro (Achuar), na Amazônia equatoria-
na, o que resultou na criação do livro The Jívaro: people of the sacred waterfalls (Harner, 1972 ). Dentre uma série de didáticas descrições, essa etnografia retrata a quantidade de cerveja de mandioca consumida por esses grupos, especialmen- te por parte dos chefes das casas. Como exemplo, Harner ( 1972 , p.52-4) descre- ve o que seria um dia na vida de um chefe de família Achuar:
O marido se levanta da cama de sua esposa em torno das duas horas da manhã, vai até o lado masculino da casa e se senta em um banco. Lava sua boca com água fresca de uma cabaça que está ao seu lado. Chama sua esposa, dizendo: “traga cerveja”. Ela esquenta um pouco de água, mistura com cerveja de mandioca e traz um pote para ele. Ela serve a ele e a um visitante (homem) que porventura tenha pernoitado ali, iluminada pela luz de uma vela de resina. Em seguida, ela retorna para o seu lado da casa e cozinha banana e mandioca. Ela serve para cada pessoa uma tigela dessa comida. Enquanto isso, o marido está fiando um tecido de algodão e con- versando em voz baixa com o visitante. A esposa traz mais cerveja e serve. Ela volta para o seu lado da casa e permanece sentada, descansando ao lado do fogo, por aproximadamente uma hora. Ela então retorna trazen- do mais cerveja. Como os homens não terminam rapidamente de beber, ela permanece agachada ao lado do marido, escutando a conversa (ela acabou de comer um pouco de mandioca no lado feminino da casa). Ela volta para lá, onde permanece por cerca de meia hora, e traz mais cerveja. Ela retorna para o seu lado da casa de novo e, depois de aproximada- mente meia hora, retorna com mais cerveja. Dessa vez ela fica e conversa um pouco como seu marido e depois retorna para sua área. Já está quase amanhecendo. O marido chama a esposa para trazer cerveja. Ela traz um grande vaso de cerveja e a serve continuamente até o amanhecer. Ele então a informa que está indo caçar e coloca cerveja dentro do seu cantil de cabaça, levando um pouco de mandioca cozida em uma bolsa de rede. Pega sua espingar- da e sai para caçar com a esposa e com os seus cães de caça. As crianças ficam em casa. Eles voltam para casa aproximadamente às duas horas da tarde, tendo matado uma cotia. Assim que chegam, o homem pede à mulher para tra- zer cerveja, o que ela faz. Ele então descarna a cotia, e ela a cozinha em uma panela (pote). Após ter cozinhado, ela leva a panela para o centro da casa e retira toda a carne, depositando-a sobre folhas frescas de bananeira. Chama os homens (o marido e o eventual visitante) para vir comer. Eles se levantam, pegam seus bancos e se dirigem às folhas de bananeira. Todas as crianças se aproximam e se agacham em volta da comida. A esposa serve um pedaço de carne para cada criança, assim como uma tigela à parte de carne para o visitante. Quando tudo foi comido, os homens se levantam e retornam com seus bancos para o local onde estavam sentados. Lavam suas mãos e bocas com água da cuia. Então o marido se levanta e pede à mulher para trazer cer- veja. Tendo tomado a cerveja, ele se deita na cama do lado masculino da
O cauim, como era conhecida a cerveja dos grupos Tupi-Guarani, era feito à base de mandioca (doce ou amarga) ou milho, podendo receber ingredientes extras, como mel ou frutas, para aumentar os teores de açúcar e, por conse- -quência, de álcool (Noelli; Brochado, 1998 , p. 119 ). Assim como nas socieda- des Jívaro, o preparo da bebida 5 e o cultivo das roças é uma função feminina, traço recorrente em outras sociedades indígenas das terras baixas sul-americanas e das terras altas andinas (Jennings; Chatfield, 2009 , p. 200 ). Nas sociedades de quatro das maiores famílias linguísticas da Amazônia – Jívaro, Tupi-Guarani, Carib e Arawak –, o status de um chefe de família muitas vezes está relacionado à quantidade de mulheres que “possui” (poligamia e/ou uma grande quantidade de filhas) e, por consequência, à quantidade de cerveja produzida e ao potencial de realizar grandes eventos festivos (cf. Harner ( 1972 , p. 80 ) sobre os Jívaro; Soares-Pinto ( 2009 , p. 106 ) sobre os Tupari; Whitehead ( 1999 , p. 402 ) sobre os Arawak e Carib das Guianas). Fenômeno que se repete em muitas partes do mundo, como nas sociedades Luo, do Kenia:
[...] feasting is gendered asymmetry in terms of labor and benefits. Specifi- cally, female labor (producing and processing the agricultural supplies essen- tial for feasts) often largely supports a system of feasting which men are the primary beneficiaries in the political arena. This is one of the main reasons why there is a linkage between polygyny and male political power […]. (Die- tler, 2001 , p. 91 ) Esse desequilíbrio entre os gêneros é particularmente explícito em alguns grupos, como os Shipibo-Conibo do alto Amazonas, para os quais a principal fes- ta (e bebedeira) celebrava a clitoridectomia (retirada do clitóris) de garotas que chegaram à idade de se casar. Trata-se de uma “precaução” masculina para evitar a volta do tempo mitológico em que os papéis eram invertidos (pré-agricultura?): as mulheres estavam no controle e possuíam pênis (uma versão expandida do cli- tóris que, por isso, deve ser retirado) (DeBoer, 2001 , p. 218 ; Roe, 1982 ). O fardo feminino ligado ao cultivo de alimentos e ao preparo de fermentados também é retratado na mitologia dos índios Campa (Ashaninka) do sudoeste amazôni- co. Kashiri, nome dado tanto à Lua quanto à cerveja (em Arawak), apresenta a mandioca e seu cultivo a uma garota (em período de reclusão) do grupo, que engravida de Kashiri, dando luz ao Sol, que a queima viva. É interessante notar que Kashiri, além de ser um símbolo do sofrimento feminino, é o responsável pelo início do canibalismo entre os Campa (Weiss, 1972 , p.162-3). Apesar desse evidente desequilíbrio, não se trata apenas de chegar a uma conclusão marxista de inserir as mulheres na categoria “classe explorada” (Ho- dder, 1994 , p.79), já que, em muitos casos, elas compartilham o prestígio do marido (Dietler, 2001 , p. 92 ). Da mesma forma, ao controlar o fluxo de bebidas, as mulheres podem participar e influenciar em importantes decisões políticas, especialmente em debates que ocorrem em âmbito doméstico (Bowser, 2002 , p. 240 , 276 ; Jennings; Chatfield, 2009 , p. 216 ).
Tanto os grupos Tupi-Guarani quanto os demais Tupi parecem se en- caixar bem nessa desigual divisão por gênero. Entretanto, ao invés de celebrar a derrota das mulheres, como os Shipibo-Conibo, esses grupos parecem co- memorar a “vitória” masculina. Afinal, o clímax ritualístico dos Tupinambá era o ritual antropofágico, uma celebração ao homem guerreiro e caçador, ou melhor, ao homem predador (Viveiros de Castro, 1986 ). Isso era feito à custa de uma sobrecarga das mulheres (Montaigne, 2009 , p. 57 ), o que permite su- por que, antes da produção em larga escala dos fermentados, essa balança era menos desigual. O ritual antropofágico Tupinambá pode ser visto, então, como um símbo- lo da manutenção do status quo desses grupos. Ideia que fica clara ao observar a incrível semelhança entre as crônicas históricas desses grupos (Abbeville, 1975 ; Évreux, 2002 ; Soares de Souza, 2001 ; Staden, 1974 ; Thevet, 1978 ). Uma persis- tência na estrutura desses grupos, incluindo a cultura material, que levou Noelli (1993) a taxá-los de “sociedades prescritivas”, avessas a mudanças. Essa questão (a)temporal é explorada por Viveiros de Castro ( 2002 , p. 248 ; Cunha; Viveiros de Castro, 2009 , p. 90 ), que liga os rituais de bebedeira à me- mória que, por sua vez, é voltada ao tema da vingança. Trata-se do aspecto comunicativo das bebedeiras: seu excesso, combinado à exaustiva repetição de danças e cantos dias a fio, proporciona condições de alteração de consciência para o diálogo com os antepassados, com o lado obscuro, 6 a fermentação for- necendo o caminho para ligar as ideias de predação e transformação (Sztutman, 2008 , p. 235 ). Segundo Sztutman ( 2008 , p. 242 ), o ritual alcoólico e antropo- fágico é um momento de abertura com relação ao “outro” e ao mundo, uma vez que é nele que se diluem as fronteiras que separam categorias como as que existem entre o eu e o outro, um parente e um estrangeiro, um humano e um não humano, e um conterrâneo e um inimigo: claro e obscuro se transformam em cromatismo. O ápice dessa busca pela alteridade e atemporalidade ocorreria em uma série de enunciados litúrgicos, quando o prisioneiro a ser morto e de- vorado declara já ter comido muitos parentes de seus algozes e que será vingado (Viveiros de Castro, 1986 , 2002 ; cf. Staden, 1974 , p.181-2):
Whereas acts and substances represent substantially that which is present, the words of liturgy can connect that which is present to the past, or even the be- ginning of time, and to the future, or even to time’s end. in their invarian- ce itself the words of liturgy implicitly assimilate the current event into an ancient ageless category of events, something that speechless gesture or mortal substance of expendable objects alone cannot. (Rappaport, 1999 , p. 152 ) O ritual Tupinambá era cercado de símbolos (figuras geométricas bidi- mensionais) que se repetem por toda a parte: no corpo do matador e da vítima, no chocalho xamânico, nas flechas e nos vasos cerâmicos. Depois da reclusão à qual o matador tem de se sujeitar, esses símbolos ganhavam um caráter eterno e tridimensional ao serem cravados (incisos) na pele do matador. Evento que
elaborada e engobo vermelho (que também aparece na cerâmica Mina). Ou seja, desde os primeiros vasos (dos quais se tem notícia) para consumo de fermen- tados, ocorre uma divisão (há exemplos do contrário) entre vasos para preparo (corrugados, ungulados, escovados) e tigelas para consumo (pintadas). Essa di- visão seria observada com notável constância – abrangendo infinitas variações de formatos e de desenhos plásticos e crômicos – em um universo de falantes de diferentes línguas, dentro e fora da Amazônia. É incrível como esse duo panela corrugada/tigela pintada sobreviveu ao tempo e ao espaço – uma verdadeira Tradição da Floresta Tropical – enquan- to aparentemente a cerâmica rústica Mina foi desaparecendo: mesmo incerta, a ausência de vasos para preparo e consumo de fermentados parece provável (cf. formas Mina em Bandeira, 2010 ). Portanto, se hoje é reconhecido que a domes- ticação de alimentos ocorreu por meio de uma relação simbiótica, ou coevolutiva, entre o ser humano e as plantas (Rindos, 1984 ), pode-se dizer, com certo exage- ro,^7 que houve uma relação simbiótica entre a cerâmica (ou determinados tipos de vasos e estilos cerâmicos) e o consumo de fermentados nas sociedades ame- ríndias pré-coloniais. Suposição que pode, inclusive, fornecer um caminho para a compreensão da imensa variabilidade interna dos Jê do Brasil Central (Robrahn- -Gonzáles, 1996 ) ante certa homogeneidade Tupi-Guarani: a cerâmica Jê não é (tradicionalmente) um componente ritual nem tende a carregar um estilo que está difundido – o pervasive style de DeBoer ( 1991 , p. 148 ) – em outros campos da sociedade, como em outros objetos ou no próprio corpo (Müller, 1990 ). Também chama a atenção o potencial de separar e dividir grupos pela va- riabilidade desse duo. Por exemplo, na comunidade multiétnica de Conambo (Equador), formada majoritariamente por grupos de língua Quechua e Jívaro, todas as mulheres (maduras) produziam tigelas pintadas para o consumo de chi- cha , ainda que diferenças estilísticas permitissem distinguir quais tigelas eram ligadas a cada metade (Bowser; Patton, 2008 , p. 110 ). Na ocorrência de casa- mentos entre metades, a esposa, ao mudar para a casa do marido, tendia a mudar de estilo, adotando o padrão da sogra. Um exemplo de que os laços políticos podem ser mais fortes do que os laços étnicos (Bowser, 2002 , p. 198 ). Além dis- so, verificou-se que esses grupos costumavam enterrar seus mortos nos grandes vasos para preparo de fermentados (ibidem, p. 138 ), característica análoga à dos grupos Tupinambá e Guarani. No caso desses Tupi-Guarani, ocorrem exemplos de tigelas para consumo utilizadas como tampa ou acompanhamento das urnas (Buarque, 2010 ), como se servissem para não faltar bebida ao falecido (Figura 1 ). A fabricação de cerâmica, incluindo os vasos de preparo e consumo de cerveja, era uma atividade feminina, tanto nos grupos Tupi-Guarani quanto nos grupos Jívaro. Em ambos, percebe-se que os vasos destinados ao consumo de fermentados eram os que mais recebiam decorações policrômicas. Segundo Harner ( 1972 , p. 66 ), os vasos para o preparo da cerveja – os maiores produzi- dos pelos Jívaro – possuíam decoração nos seus pescoços, e os grandes vasos de
consumo de cerveja possuíam decoração por toda a face interna. Nos pequenos vasos de consumo, essas decorações ocorriam na face externa do vaso. O autor indica que os motivos pintados seriam simples padrões em zigue-zague. No en- tanto, tal descrição parece destoar da sofisticada cerâmica policrômica apresen- tada por Karsten (1935), que esteve com os Jívaro nos anos 1930 , o que aponta uma variabilidade interna entre os Jívaro e/ou uma possível simplificação no processo de manufatura dos vasos (Figura 2 ). O significado dos motivos pintados nos vasos para preparo e consumo da cerveja está longe de ser aleatório. Por exemplo, na citada comunidade de Co- nambo o design das pinturas é um forte elemento cultural para os grupos Que- tchua e Jívaro, um marcador de identidade. Foi também observado, nas socieda- des Tupi e Tupi-Guarani (Lima, 2005 ), que os fermentados simbolizavam uma forma de morrer análoga ao ritual canibal, da mesma forma que podem simbo- lizar o leite materno e a vida (Soares Pinto, 2009 ). Neste último sentido, não é de estranhar que a saliva – o componente exógeno essencial para a fermentação do milho e da mandioca, ao contrário das frutas, que já possuem maltose – seja vista como elemento vital para os Asurini, já que dá vida tanto ao cauim quanto à própria cerâmica, ao ser utilizada durante o alisamento dos vasos (Müller, 1990 , p. 183 ; Neumann, 2008 , p. 35 ). Entretanto, um lado mais sombrio e mórbido é frequente nos motivos pintados das vasilhas da Subtradição Tupinambá do litoral, incluindo partes humanas devoradas nos rituais antropofágicos, como representações de intestinos (Buarque, 2010 , p.169-70). É evidente que nem todos os grupos precisam expressar identidade em vasos e tigelas para o consumo de fermentados. Habitantes da bacia do alto rio Madeira, os grupos de língua Tupi-Arikém, talvez não tivessem tigelas ce- râmicas para o consumo de fermentados, e sim cuias (cabaças) com hastes para esse fim (Magalhães, 1916 ). Outro exemplo da mesma região vem dos Suruí (Tupi-Mondé), que preferem realizar motivos pintados na produção de cesta- ria do que na cerâmica. Na cerâmica arqueológica “Tupi”, escavada em áreas de interflúvio nas proximidades do alto-médio Ji-Paraná (Zimpel Neto, 2009 ), tampouco há tigelas policrômicas, e quase não há exemplos de tigelas carenadas (com ombros), nos moldes Tupi-Guarani. O que, ainda assim, não serve para justificar que esses grupos (Tupi não Tupi-Guarani) não tinham suas identidades reafirmadas pelo consumo de fermentados. A própria utilização de uma cuia com haste, caso tenha sido uma antiga tradição, poderia ser um diferenciador cultural dos Arikém em relação aos outros grupos. A utilização de diferentes formas cerâmicas não decoradas (e.g. entre os Tupari e os Suruí) ou de diferentes termos para designar os vasos e a cerveja, assim como variações no próprio produto vegetal que serve de base para o fer- mentado, também podem ter servido para antagonizar identidades. Por exem- plo, no império andino Wari ( 600-1100 d.C.), o uso de um vegetal alternativo ao milho, fruto da árvore Schinus molle , teria sido um diferenciador desse grupo
em relação aos demais (Goldstein et al., 2009 ). O que, até certo ponto, pode ter ocorrido na região do alto Madeira, onde alguns grupos optaram pela utilização da mandioca, ali domesticada (Clement, 1999 ; Clement et al., 2010 ; Olsen; Schaal, 1999 ), outros pelo milho, introduzido de fora (por migrantes Arawak?), assim como outros vegetais e outras combinações. A pupunha, por exemplo, a única palmeira domesticada da América do Sul, possui origem genética cre- ditada à região do alto rio Madeira (Olsen; Schaal, 1999 ) e é fonte de bebidas fermentadas dos índios Campa (Arawak), encontrados na mesma região (Weiss, 1972 , p. 163 ). Pode-se supor, então, que uma composição de elementos ligados ao con- sumo de fermentados pode ter, em muitos casos, permitido aos diversos grupos Tupi do sudoeste amazônico se diferenciar uns dos outros e de outros grupos não Tupi, mesmo sem a ocorrência de tigelas policrômicas. A presença das pa- nelas para preparo de fermentados, todavia, aparece no registro etnográfico dos Suruí e dos Tupari (Tabela 1), assim como nos sítios arqueológicos do alto curso dos rios Ji-Paraná e Roosevelt (Miller, 2009 , p. 125-6), na forma de urnas funerárias. Como a cronologia dessa região (alto Ji-Paraná e alto Roosevelt) é bastante recuada, com datas de até 2000 a.C. (Zimpel Neto, 2009 ), há fortes indícios de que as urnas, e provavelmente as decorações corrugadas encontra- das nos sítios onde essas foram recuperadas, são elementos comuns a todos (ou quase todos) os grupos Tupi. Nesse sentido, as urnas dos Tupi-Guarani parecem muito mais próximas das de seus parentes linguísticos do tronco Tupi do que de seus parentes estilísticos (no campo policrômico) Arawak ribeirinhos (Almeida, 2013 ; Tabela 1). Isso parece significar que, mesmo antes da dispersão dos Ara- wak para formar uma série de núcleos amazônicos (Heckenberger, 2002 ), pouco antes do início da era cristã, os antigos falantes de línguas Tupi vinham coloni- zando a Amazônia meridional em meio às festas e aos rituais antropofágicos que caracterizam essas sociedades (Figura 3). A vida de interflúvio não era elementar. Dados históricos (Hornborg; Hill, 2011 ; Taylor, 1999 ) e arqueológicos (Almeida, 2013 ; Lathrap, 1970 ) sugerem uma rede de contatos perpendiculares aos existentes nos cursos dos grandes rios amazônicos. Na Amazônia meridional pré-colonial, essa rede seria formada principalmente por grupos do tronco Tupi – no sudoeste Amazônico – e da família Tupi-Guarani – no sudeste –, assim como produtores de cerâmica Inciso- -Modela (não Tupi). No interflúvio Xingu-Tocantins, por exemplo, o contato desses grupos confundiu e ainda confunde os estudiosos, como a fase Carapa- nã, uma suposta cerâmica híbrida entre a Tradição Tupi-Guarani e a cerâmica Inciso-Modelada (Figueiredo, 1965 ; Simões et al., 1973 ), reavaliada por Garcia (2012) como apenas Inciso-Modelada. Nas regiões de interflúvio da Amazônia ocidental, o cenário é ainda mais heterogêneo, uma verdadeira confusão cor- rugada, uma vez que esse elemento é encontrado tanto em grupos de língua Tupi quanto de língua Pano, Arawak e Jívaro (cf. Steward; Métraux, 1948 ),
um forte indício de relações entre esses grupos. É o que argumentam autores como Santos-Granero ( 2002 , p. 31-32) e Hornborg e Hill ( 2011 , p. 135 ), que sugerem que, enquanto os grupos Pano ribeirinhos adotaram um modo de vida (dos também ribeirinhos) Arawak do rio Ucayali (no alto Amazonas), os grupos Pano dos interflúvios (como os Cashibo e Setebo) teriam uma cultura muito mais próxima da dos Arawak de terra firme (como os Campa), com quem prio- rizavam relações de interação. O que poderia nesse caso ser traduzido no duo paradoxal “corrugado multiétnico de terra firme” versus “policrômico multiét- nico ribeirinho”. Um cenário, para algum tupinólogo acostumado apenas com os arqueologicamente isolados e bem definidos Tupinambá do litoral e Guarani do Sul, de imenso caos. Assim, é necessário retornar a um terreno mais seguro. Foi observado que as tigelas (em geral pintadas) para consumo e as pa- nelas (em geral corrugadas) para preparo são os elementos que menos variam na Tradição Tupi-Guarani. Vasos com forma de tigela, com “ombro” e pintura vermelha sobre engobo branco, são característicos das Subtradições Tupinambá da Amazônia, 8 Tupinambá do litoral e Guarani (i.e. da Tradição Tupi-Guarani), assim como as grandes vasilhas angulosas e por vezes com decoração corruga- da. Exemplos de variações (entre Subtradições) seriam a baixa frequência de corrugados nas panelas Tupinambá e a baixa frequência de panelas com fundos cônicos na Subtradição Tupinambá da Amazônia, o que pode ser decorrente do reduzido número de vasos completos encontrados nessa Subtradição. Outro exemplo são as tigelas quadrangulares nos sítios relacionados aos Tupinambá do litoral, supostamente ausentes nas demais Subtradições. Entretanto, Lorena
Figura 3 – Supostos núcleos multiétnicos orquestrados por grupos Arawak por vol- ta do início da era cristã.
Ao olhar para a cerâmica da Tradição Polícroma da Amazônia (TPA) – tendo em mente a variabilidade de elementos das tigelas e panelas para fermen- tados da Tradição Tupi-Guarani – fica claro que se trata de dois agrupamentos distintos (Tabela 1 ). Primeiro (I), não há um padrão de tigelas com ombros e decorações pintadas sobre os ombros na TPA. Na verdade, é difícil apontar qual seria a tigela para consumo de bebidas na TPA. Essas tigelas com decora- ção policrômica só aparecem com grande frequência no alto Amazonas, ainda que, nesse caso, assemelhem-se às produzidas por outros ocupantes dessa região como as da Fase arqueológica Cumancaya e as dos atuais Jívaro. Além disso (II), as urnas funerárias TPA (as supostas panelas para preparo de fermentados) possuem formato distinto da Tradição Tupi-Guarani: as urnas TPA em geral possuem formato cilíndrico, com um bojo inferior avantajado, ao passo que os yapepó (panelas Guarani) tendem a ter o bojo superior avantajado (Tabela 1 ). Por fim (III), muitas panelas-urna Tupi-Guarani possuem decoração corrugada, elemento ausente na cerâmica TPA. É raro, no entanto, as urnas Tupi-Guarani possuírem decoração policrômica e, mesmo quando está presente, essa decora- ção é encontrada apenas na parte superior do vaso (Prous, 2010 ). Essa rica uti- lização da policromia na TPA, muitas vezes combinada com apliques modelados com desenhos antropomorfos, permite pensar se essas urnas de fato eram tam- bém levadas ao fogo (como no caso Tupi-Guarani). Ao que parece, esse tipo de vaso TPA nasceu com apenas um uso em vista, o de ser urna funerária, ao passo que os Tupi-Guarani fizeram valer mais o esforço manufatureiro desses grandes vasos e os teriam utilizado em mais de uma função. Os produtores (ou a maior parte deles) de cerâmica da Tradição Polícro- ma da Amazônia não parecem ter utilizado os vasos para preparo e consumo de bebidas fermentadas como elementos de identidade,^9 ao contrário do que ocorreu com os produtores (ou a maior parte deles) de cerâmica da Tradição Tupi-Guarani, da fase Cumancaya (Shipibo-Conibo) e os Jívaro. Portanto, do ponto de vista de uma análise preliminar que usa cerâmicas arqueológicas para preparo e consumo de fermentados, não há uma ligação direta entre a Tradição Polícroma da amazônia e a Tradição Tupi-Guarani. O que se propõe aqui é que os elementos cerâmicos comuns à TPA e à Tradição Tupi-Guarani são fruto de contatos em diferentes locais e momentos com uma vasta rede pan-amazô- nica, provavelmente orquestrada por grupos de língua Arawak (Almeida, 2013 , Figura 1). Rede que também teria influenciado o estilo cerâmico de uma série de grupos de línguas diferentes, como os atuais grupos Jívaro e os Shipibo-Conibo (Fase Cumancaya). Como essa rede teria ocupado lugares específicos, os chamados lugares significativos (Zedeño; Bowser, 2009 , p. 6 ), como áreas de cachoeiras de en- contros de grandes rios e não toda a extensão desses rios, é natural que alguns grupos tenham participado e sido influenciados por essa rede e outros não. Cla- ramente deficitária de estudos mais intensivos para “comprová-la” essa hipótese
possui como maior mérito a habilidade em explicar como grupos do alto Ama- zonas (e.g. os Shipibo-Conibo e os Jívaro) e do baixo Amazonas (e.g. os grupos Tupi-Guarani) possuem tamanha semelhança estilística, sem que provavelmente nunca tenham tido contato direto: possuíam, sim, um ancestral estilístico em comum. Além disso, tal hipótese explica porque alguns membros de grupos linguísticos (como os Tupi-Guarani e os Shipibo Conibo) possuíam tigelas poli- crômicas para o consumo de fermentados enquanto grande parte de seus paren- tes linguísticos não (i.e. grande parte das demais famílias do Tronco Tupi e da família Pano, respectivamente). Se estiver correta, essa proposta pode inclusive “datar” o início do estilo cerâmico dos Tupi-Guarani, a ser consagrado no tem- po como uma Tradição. Ou seja, indicar quando a família linguística e a Tradi- ção arqueológica passaram a caminhar juntas. Sugere-se aqui (ver a seguir) que essa “sincronização” tenha ocorrido pouco tempo antes do início da era cristã, provavelmente no sudeste amazônico (área de maior variabilidade linguística e estilística entre os Tupi-Guarani). A diferenciação estilística entre a TPA e a Tradição Tupi-Guarani, no en- tanto, não desqualifica a possibilidade de a TPA estar relacionada a grupos de língua Tupi. Pelo contrário, uma futura confirmação do alto Madeira como local de origem da dispersão dos grupos TPA, um local historicamente ligado a gru- pos Tupi (Menéndez, 1981/1982), somada ao caráter belicoso dessa dispersão e à sua “ponta de lança” Kokama-Omágua,^10 levará à conclusão de que a TPA era relacionada, sim, a grupos de língua Tupi. No caso Tupi-Guarani, sugere-se o contato desses grupos com uma das ramificações dos grupos com cerâmicas Inciso-Pintadas (dos antigos Arawak), provavelmente em data próxima ao início da era cristã. Se essa hipótese estiver correta, significa que as mais antigas cerâmicas da Tradição Tupi-Guarani não se encontram no alto Ji-Paraná (sudoeste amazônico), conforme postulou Miller (2009), uma vez que a cerâmica da região do rio Ji-Paraná não apresenta a po- licromia característica da Tradição Tupi-Guarani, e a presença de falantes Tupi- -Guarani (Kagwahiva) nessa região data do período colonial. No entorno do baixo Xingu, há presença de policromia na cerâmica da Tradição Tupi-Guarani, com datas relativamente antigas (atingindo 280 ± 80 d.C.), em regiões não muito distantes (Figueiredo, 1965 ; Garcia, 2012 ; Pereira et al., 2008 ; Silveira et al., 2008 ) e uma grande variedade de grupos falantes de Tupi-Guarani (Mello; Kneip, 2006 ; Rodrigues, 1984/1985). Dessa forma, e com esse possível panorama que coloca a região de entorno do baixo Xingu como centro de origem da dispersão dos Tupi-Guarani, seria de vital importân- cia reconsiderar as datas mais antigas (anteriores ao início da era cristã) obtidas por Silveira et al. (2008), que poderiam resolver a questão (Almeida; Neves, manuscrito não publicado). A hipótese de que a formação do Estilo (posteriormente Tradição) Tupi- -Guarani aconteceu no entorno do baixo rio Xingu (em rituais de cachoeira?) e
que esse local pode, assim, estar ligado à dispersão dos grupos Guarani e Tupi- nambá, possui o atrativo extra de não ser apenas mais um dentro de um histórico de palpites de tupinólogos em busca da glória de acertar o “local de origem” desses grupos. Trata-se exatamente do local de origem sugerido por um dos pri- meiros tupinólogos, Karl von den Steinen ( 1942 ; cf. Noelli, 1996 ), apenas com uma calibragem do trecho central desse fenômeno (o baixo Xingu, ao invés do alto, como pensara Steinen):
Será, portanto, de importância decisiva para o problema da emigração tupi, saber se nas cabeceiras do Xingu, no Planalto Central, onde mais ou menos se encontra o ponto geográfico central da irradiação tupi, ainda existam tribos tupi. Admitindo que ali ainda elas existam, será necessá- rio saber quais dialetos tupi se aproximam principalmente dessas tribos incólumes de qualquer civilização até hoje, através de sua linguagem, se colocam numa categoria próxima dos primeiros tupinambás , encontrados antigamente pelos descobridores. (Steinen, 1942 , p. 374 , grifo nosso)
Carneiro ( 1961 , 1995 ) apontou para a possibilidade de grandes aldeias sedentárias em áreas de interflúvio, sobrevivendo à base de uma agricultura de coivara (corte e queima). Apesar da viabilidade dessa vida mais sedentária, Car- neiro ( 1995 , p.63-4) argumenta pela predisposição ao movimento por parte dos grupos de interflúvio, principalmente em virtude do modo de vida caçador que esses grupos mantiveram, mesmo após começarem a cultivar alimentos. Por trás dessas constatações, Carneiro realiza uma elegante equalização entre pro- postas antagônicas. De um lado, encontrava-se a visão ecológica defendida por Meggers (1987), em que o ambiente amazônico era restritivo quanto ao desen- volvimento de populações humanas. De outro lado, havia uma série de outras interpretações ecológicas, como as de Lathrap (1970) e Roosevelt (1999), em que as várzeas amazônicas possuiriam condições quase ilimitadas para o desen- volvimento de sociedades humanas. Essa dicotomia está igualmente presente em um debate quanto aos movi- mentos de grupos Tupi-Guarani para fora da Amazônia. Por um lado, autores como Meggers ( 1977 , 1982 ), Miller ( 1983 , 2009 ) e o mais conciliador Schmitz (1991) defenderam que eventos climáticos (como o optimum Climáticum ) de contração e expansão da floresta tropical amazônica teriam levado à migração dos grupos Tupi-Guarani para o sul, sudeste e nordeste brasileiro, a partir do sudoeste amazônico. Por outro lado, autores como Lathrap (1970), Brochado ( 1984 , 1989 ), Brochado e Lathrap (1982) e Noelli ( 1996 , 1998 ) creditavam a dispersão de grupos Tupi-Guarani a movimentos de expansão ligados a proces- sos de aumento populacional, partindo da Amazônia Central e gradualmente ocupando as margens dos grandes rios dentro e fora da Amazônia, incluindo os rios Madeira, Paraguai e Paraná, assim como o litoral brasileiro e, a partir deles, colonizando áreas de interflúvio. Segundo Noelli ( 1996 , p. 10 ), o termo
migração “seria mais adequado para definir as movimentações que os mesmos (Tupi-Guarani) realizaram, motivados pela pressão de outros grupos, como por exemplo após 1500 , dos europeus”. Apesar das evidentes contribuições feitas por Lathrap, Brochado e No- elli – sendo a mais importante delas a retomada de bases etnográficas e etno- -históricas para a interpretação dos dados arqueológicos –, esses autores acaba- ram por adotar uma posição demasiadamente antagônica com relação à visão determinista de Meggers e Miller, extrapolando para o lado oposto (ilimitadas possibilidades de processos de desenvolvimento social, econômico e político por parte dos Tupi-Guarani). Entretanto, ao contrário do que ocorreu com o debate pan-amazônico entre Meggers e Lathrap, e depois entre Meggers e Roosevelt, que foi equalizado por autores como Carneiro (1995) e Neves ( 2008 , 2012 ), a arqueologia Tupi-Guarani ainda carece de uma reavaliação dos prós e contras dessas diferentes propostas. Um dos problemas nas interpretações realizadas por Lathrap, Brochado e Noelli reside no caráter demasiadamente processual, de longa duração, das explanações. Sabe-se que, apesar de o know-how em estudos de longa duração ser o maior atrativo das pesquisas arqueológicas, essa mesma capacidade pode se tornar uma maldição, à medida que as possibilidades contingenciais, de eventos, são descartadas em prol de explanações ligadas apenas a processos de longa du- ração (Morris, 2000 , p. 5). Como ensinam os múltiplos exemplos de bebedeiras Tupi-Guarani, basta uma discussão trivial durante uma festa para alterar o status quo de uma hora para outra, separando famílias, tornando amigos em inimigos, transformando cunhados em alvos para rituais canibais, levando a mudanças na economia e na política e, é possível, forçando grandes mudanças territoriais. Tendo em mente questões como a quebra do monopólio da longa du- ração, é possível contribuir para reestabelecer um equilíbrio epistemológico e avançar dentro de macrodiscussões sobre os Tupi e os Tupi-Guarani. Até o mo- mento, a maior dessas contribuições é um novo olhar sobre os grupos de interf- lúvio (Almeida, 2008 , 2013 ; Almeida; Garcia, 2008 ; Garcia, 2012 ; Pereira et al., 2008 ; Silveira et al., 2008 ). Outra questão que avançou muito com os trabalhos de Lathrap, Brochado e Noelli, mas que necessita ser reavaliada, é a da oposição entre migração e expansão. Conforme apontado, na visão desses autores, a história Tupi-Guarani é uma história de expansão, sendo as migrações muito mais ligadas à catástro- fe pós-contato. Ao falar dessas migrações, Noelli (1996) se refere aos famosos movimentos messiânicos ocorridos durante os primeiros séculos da colonização europeia (séculos XVI e XVII), realizados por grupos Tupi-Guarani, em busca da chamada terra sem mal (Clastres, 1978 ; Métraux, 1979 ). Nessas ocasiões, muitos grupos Tupi-Guarani teriam sido coagidos por líderes religiosos a fugir dos europeus. Talvez rios tenham sido utilizados, mas a migração Tupinambá entre o Pernambuco e o Maranhão (Abbbeville, 1975 [1614]) e a migração Gua-