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literatura;Panorama social e político;Ficção filosófica
Tipologia: Notas de estudo
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Milan Kundera
Milan Kundera nasceu em 1929 em Brno, na Tchecoslováquia. Em 1975, fixou residência em Paris, tendo entretanto adotado a nacionalidade francesa. Toda a sua obra ficcional (A Insustentável Leveza do Ser, A Brincadeira, A Valsa do Adeus, A Vida não é Aqui e a Imortalidade), bem como o ensaio A Arte do Romance, se encontram editados em Portugal. Principais prêmios que obteve: Prêmio da União dos Escritores Checoslovacos (1968); Prêmio Médicis (1973); Prêmio Mondello (1978); Prêmio Commonwealth (1981); Prêmio Literário Americano do Los Angeles Times (1984); Prêmio Jerusalém (1985).
O eterno retorno é uma idéia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato? O mito do eterno retorno diz-nos, pela negativa, que esta vida, que há-de desaparecer de uma vez por todas para nunca mais voltar, é semelhante a uma sombra, é desprovida de peso, que, de hoje em diante e para todo o sempre, se encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não têm qualquer sentido. Não vale mais do que uma guerra qualquer do século XIV entre dois reinos africanos, embora nela tenham perecido trezentos mil negros entre suplícios indescritíveis. Mas algo se alterará nessa guerra do século XIV entre dois reinos africanos se, no eterno retorno, se vier a repetir um número incalculável de vezes? Sem dúvida que sim: passará a erguer-se como um bloco perdurável cuja estupidez não terá remissão. Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, a historiografia francesa orgulhar-se-ia com certeza menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a algo que nunca mais voltará, esses anos sangrentos reduzem-se hoje apenas a palavras, teorias, discussões, mais leves do que penas, algo que já não aterroriza ninguém. Há uma enorme diferença entre um Robespierre que apareceu uma única vez na história e um Robespierre que eternamente voltasse para cortar a cabeça aos franceses. Digamos, portanto, que a idéia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as coisas não nos aparecem como é costume, porque nos aparecem sem a circunstância atenuante da sua fugacidade. Essa circunstância atenuante impede-nos, com efeito, de pronunciar um veredicto. Poderá condenar-se o que é efêmero? As nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da nostalgia; mesmo a guilhotina. Não há muito, eu próprio me defrontei com o fato: parece incrível mas, ao folhear um livro sobre Hitler, comovi-me com algumas das suas fotografias; faziam-me lembrar a minha infância passada durante a guerra; diversas pessoas da minha família morreram nos campos de concentração dos nazistas, mas o que eram essas mortes comparadas com uma fotografia de Hitler que me fazia lembrar um tempo perdido da minha vida, um tempo que nunca mais há-de voltar? Esta minha reconciliação com Hitler deixa entrever a profunda perversão inerente ao mundo fundado essencialmente sobre a inexistência de retorno, porque nesse mundo tudo se encontra previamente perdoado e tudo é, portanto, cinicamente permitido.
Se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um número infinito de vezes, ficamos pregados à eternidade como Jesus Cristo à cruz. Que idéia atroz! No mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade. Era o que fazia Nietzsche dizer que a idéia do eterno retorno é o fardo mais pesado (das schwerste Gewicht). Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza. Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela? O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais pesado
for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é. Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes. Que escolher, então? O peso ou a leveza? Foi a questão com que se debateu Parmênides, no século VI antes de Cristo. Para ele, o universo estava dividido em pares de contrários: luz-sombra; espesso-fino; quente-frio; ser-não ser. Considerava que um dos pólos da contradição era positivo (o claro, o quente, o fino, o ser) e o outro, negativo. Esta divisão em pólos positivos e negativos pode parecer de uma facilidade pueril. Exceto num caso: o que é positivo: o peso ou a leveza? Parmênides respondia que o leve é positivo e o pesado, negativo. Tinha razão ou não? O problema é esse. Mas uma coisa é certa: a contradição pesado-leve é a mais misteriosa e ambígua de todas as contradições.
Há vários anos que ando a pensar em Tomas, mas só à luz destas reflexões é que o vi pela primeira vez com toda a nitidez. Vejo-o de pé, a uma janela da sua casa, a olhar fixamente para o prédio em frente do outro lado do pátio. Sem saber o que fazer. Conhecera Tereza mais ou menos há três semanas numa cidadezinha da Boêmia. Só tinham passado pouco mais de uma hora juntos. Ela acompanhara-o à estação e tinha esperado até ele entrar no comboio. Dez dias mais tarde, veio vê-lo a Praga. Fizeram amor logo no próprio dia da sua chegada. Durante a noite, Tereza ficou cheia de febre e passou uma semana inteira com gripe em casa dele. Sentiu então um amor inexplicável por essa rapariga que mal conhecia. Parecia-lhe uma criança que alguém pusera numa cesta untada com pez e abandonara às águas de um rio para ele recolher na margem da sua cama. Ficou uma semana em casa dele e, depois, uma vez curada, voltou para a cidade onde morava, a duzentos quilômetros de Praga. E é aqui que se situa o momento de que falei há pouco e onde vejo a chave da vida de Tomas: está de pé à janela a olhar fixamente para o prédio em frente do outro lado do pátio, e reflete: “Deve-lhe propor que venha instalar-se em Praga? É uma responsabilidade que o apavora. Se a convida agora a vir passar uns dias a sua casa, ela virá imediatamente oferecer-lhe a vida inteira”. Ou deve renunciar? Nesse caso, Tereza continuará a ser criada numa cervejaria daquele buraco de província e nunca mais a verá. Quer que ela venha ter consigo ou não? Olha para o pátio, tem os olhos fixos no prédio em frente e procura uma resposta. Volta, ainda e sempre, à imagem daquela mulher deitada no seu divã; nunca conhecera ninguém assim. Não era nem uma amante nem uma esposa. Era uma criança que tirara de uma cesta untada com pez e que pousara na margem da sua cama. Ela adormecera. Ajoelhou-se ao seu lado. O hálito febril acelerou-se e ouviu um leve gemido. Encostou o rosto ao dela e soprou algumas palavras de repouso para dentro do seu sono. Um instante depois, pareceu-lhe que a respiração de Tereza se acalmava e que o seu rosto se levantava maquinalmente em direção ao dele. Cheirava-lhe nos lábios o cheiro um pouco acre da febre e aspirava-o como se se quisesse impregnar da intimidade do seu corpo. Pôs-se então a pensar que Tereza já lá morava em casa há muitos anos e que estava moribunda. De repente, tornou-se-lhe evidente que não sobreviveria à sua morte. Deitar-se-ia a seu lado para morrer também. Escondeu o rosto contra o dela na almofada e assim ficou por longo tempo. Neste momento, está de pé à janela e invoca esse instante. O que seria que assim se dava a conhecer senão o amor? Mas o amor era isso? Tinha-se convencido de que queria morrer ao lado dela, e este sentimento era manifestamente excessivo: se era só a segunda vez que a via! Não seria antes a reação histérica de um homem que, ao aperceber-se, no seu foro íntimo, da sua incapacidade para amar, começava a representar para si próprio a comédia do amor? Ao mesmo tempo, o seu subconsciente era de tal modo covarde que escolhia para essa comédia uma pobre criada de província que não tinha praticamente hipótese nenhuma de entrar na sua vida! Olhava para as paredes sujas do pátio e percebia que não sabia se aquilo era histeria ou amor. E, numa situação em que qualquer homem a sério saberia imediatamente como agir, censurava-se intimamente por hesitar e por assim privar o momento mais belo da sua vida (ajoelhado à cabeceira da rapariga, convencido de que não sobreviveria à sua morte) de todo e qualquer significado. Censurava-se intimamente, mas acabou por pensar que, no fundo, não se saber o que se deve querer é normal: “Nunca se pode saber o que se deve querer porque só se tem uma vida que não pode ser comparada com vidas anteriores nem retificada em vidas posteriores”. É melhor ficar com Tereza ou ficar sozinho? Não há forma nenhuma de se verificar qual das decisões é melhor porque não há comparação possível. Tudo se vive imediatamente pela primeira vez sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter
caras, teria podido vê-lo com mais facilidade. Percebeu que tinha de pagar o amor do filho à mãe, e pagá-lo antecipadamente. Via-se mais tarde a querer ingenuamente inculcar no filho as suas idéias, diametralmente opostas às da mãe. Só de pensar nisso, ficava cansado. Num domingo em que, como de costume, a mãe desmarcara o encontro à última da hora, decidiu nunca mais ver o filho em dias da sua vida. Afinal por que se prenderia a essa criança mais que a qualquer outra? Não estavam ligados por nada, a não ser por uma noite imprudente. Depositaria escrupulosamente o dinheiro, mas que não viessem exigir dele que, em nome de vagos sentimentos paternos, disputasse a companhia do filho! É evidente que ninguém estava preparado para aceitar tal raciocínio. Os seus próprios pais condenaram a atitude que tomara e declararam que se Tomas não se interessava pelo filho, também eles, pais de Tomas, deixariam de interessar-se pelo seu. Continuaram portanto a manter com a nora relações de uma ostensiva cordialidade, gabando-se a amigos e conhecidos da sua atitude exemplar e do seu alto sentido de justiça. Num curto espaço de tempo, conseguiu, portanto, desembaraçar-se de uma mulher, de um filho, de uma mãe e de um pai. Só lhe ficara o medo das mulheres. Desejava-as, mas elas atemorizavam-no. Entre o medo e o desejo, arranjara um compromisso; era aquilo a que chamava amizade erótica. Dizia peremptoriamente às amantes: só uma relação expurgada de todo e qualquer sentimentalismo, só uma relação em que nenhum dos parceiros se arrogue qualquer direito especial sobre a vida e a liberdade do outro, pode fazê-los felizes a ambos. Para se assegurar de que a amizade erótica nunca se deixaria vencer pela agressividade do amor, espaçava intencionalmente os encontros com as suas amantes permanentes. Tinha o método por perfeito e costumava apontar-lhe as vantagens, dizendo aos amigos: ''Há que observar a regra dos três. A mesma mulher, num espaço de tempo muito curto, nunca mais de três vezes. Anos e anos, só se deixarmos passar pelo menos três semanas entre cada encontro.'' Este sistema dava-lhe a possibilidade de nunca romper com as amantes e de tê-las em abundância. Nem sempre era bem entendido. De todas as suas amigas, quem o entendia melhor era Sabina, uma pintora. Esta dizia-lhe: ''Gosto muito de ti porque és precisamente o contrário do kitsch. No reino de kitsch, tu eras um monstro. Num filme americano ou num filme russo nunca passarias de um caso repugnante. '' Foi portanto a Sabina que pediu ajuda para arranjar trabalho em Praga para Tereza. Como exigiam as regras não escritas da amizade erótica, Sabina prometeu-lhe fazer o melhor que pudesse e, efetivamente, não tardou a descobrir um lugar no laboratório de fotografia de um semanário. Era um trabalho que não exigia qualquer espécie de qualificação mas, de qualquer forma, Tereza abandonava a cervejaria para se integrar na corporação do pessoal da imprensa. A própria Sabina foi, em pessoa, apresentá-la à redação e Tomas ficou a pensar que nunca tivera melhor amiga.
A convenção não escrita da amizade erótica implicava que Tomas excluísse o amor da sua vida. Se transgredisse esta condição, as suas outras amantes, a partir daí numa posição subalterna, revoltar-se-iam imediatamente. Arranjou portanto um quarto para onde Tereza teve de levar a sua pesadíssima mala. Queria tomar conta dela, protegê-la, gozar a sua presença, mas não sentia necessidade nenhuma de mudar de vida. Por isso não queria que se soubesse que ela dormia em sua casa. A partilha do sono era o corpo de delito do amor. Com as outras mulheres nunca dormia. Quando ia a casa delas, era fácil, porque podia sair quando lhe apetecia. O caso era mais delicado quando eram elas que vinham a sua casa e lhes explicava que, depois da meia-noite, tinha de levá-las porque sofria de insônias e não conseguia dormir ao lado de outra pessoa. Esta explicação não andava longe da verdade, mas a razão principal era menos nobre e Tomas não se atrevia a confessar às companheiras que, nos momentos que se seguem ao amor, sentia um desejo imperioso de ficar sozinho. Era-lhe profundamente desagradável acordar a meio da noite ao lado de uma criatura estranha; o despertar matinal do casal causava-lhe repugnância; não tinha vontade nenhuma que o ouvissem a lavar os dentes na casa de banho e a intimidade do pequeno-almoço a dois não lhe dizia nada. Qual não foi, pois, a sua surpresa quando, ao acordar, percebeu que Tereza lhe agarrava a mão com toda a força! Olhava para ela sem conseguir perceber o que lhe tinha acontecido. Recordando as últimas horas, parecia-lhe que se desprendia delas o perfume de uma felicidade desconhecida. A partir de então, ambos sentiam antecipadamente um grande prazer na partilha do sono. Sinto-me quase tentado a dizer que o que procuravam no ato sexual não era a volúpia mas o sono que se lhe segue. Sobretudo Tereza não podia dormir sem Tomas. Se ficava sozinha no estúdio (que era cada vez mais um mero álibi), não conseguia pregar olho toda a noite. Mesmo presa da maior agitação, nos braços dele, a calma acabava sempre por chegar. Tomas contava-lhe em voz baixa contos que inventava só para ela, pequenos nadas, coisas tranqüilizantes ou divertidas que ia repetindo num tom monocórdico. Na cabeça de Tereza as palavras transmutavam-se em visões confusas que a transportavam ao primeiro sonho. Tomas tinha um poder absoluto sobre o seu sono e Tereza adormecia sempre no exato segundo que ele escolhera para isso.
Quando estavam a dormir, ela agarrava-o como na primeira noite: segurava-lhe com toda a força no pulso, num dedo ou no tornozelo. Quando Tomas queria afastar-se sem que ela acordasse, tinha de valer-se de uma artimanha. Desprendia o dedo (o pulso, o tornozelo), o que a fazia ficar meio acordada porque mesmo a dormir o vigiava atentamente. Para a acalmar, em vez do pulso, metia-lhe na mão um objeto qualquer (um pijama enrolado, uma pantufa, um livro) que ela passava a segurar com toda a força como se fosse uma parte do seu corpo. Uma noite, acabara de a adormecer e Tereza encontrava-se naquela antecâmara do primeiro sono de onde ainda lhe podia dar resposta. Disse-lhe: ''Bom! Agora vou-me embora. - Para onde?, perguntou ela. - Vou sair, respondeu com uma voz severa. – Vou contigo!, disse ela, pondo-se de pé em cima da cama. - Não, eu não quero. Vou-me embora e nunca mais volto'', disse ele, saindo do quarto e passando para a entrada. Tereza levantou-se e seguiu-o até à entrada com os olhos a piscar. Só tinha vestida uma camisa muito curta. Tinha o rosto imóvel, sem expressão, mas o corpo movimentava-se energicamente. Saiu de casa e fechou-lhe a porta na cara. Tereza abriu-a com um gesto brusco e seguiu-o, ainda meio a dormir, convencida que Tomas queria ir-se embora para não voltar e que tinha de retê-lo. Desceu um andar, parou no patamar e esperou por ela. Tereza foi ter com ele, agarrou-o pela mão e levou-o para a cama, para o pé dela. Tomas pensava consigo próprio que ir para a cama com uma mulher e dormir com ela são duas paixões não só diferentes como quase contraditórias. O amor não se manifesta através do desejo de fazer amor (desejo que se aplica a um número incontável de mulheres), mas através do desejo de partilhar o sono (desejo que só se sente por uma única mulher).
A meio da noite, Tereza começou a gemer. Tomas acordou-a, mas, ao ver a sua cara, ela disse com ódio: ''Vai-te embora! Vai-te embora!'' Depois, contou-lhe o sonho que tivera: Estavam ambos algures com Sabina. Num quarto enorme. Havia uma cama no meio, só parecia o palco de um teatro. Tomas mandou-a ficar num canto e pôs-se a fazer amor com Sabina à frente dela. Ela olhava e o espetáculo causava-lhe um sofrimento insuportável. Para abafar a dor da alma com a dor física, pôs-se a enfiar agulhas por baixo das unhas. ''Doía-me horrivelmente!'', disse, com os punhos fechados como se realmente tivesse as mãos magoadas. Abraçou-a e assim, muito devagar (porque Tereza não parava de tremer), ela voltou a adormecer. No dia seguinte, ao pensar no sonho, lembrou-se de uma coisa. Abriu a secretária e tirou um maço de cartas de Sabina. Pouco depois, deparou com a seguinte passagem: "Queria fazer amor contigo no meu atelier como se fosse o palco de um teatro. Estaria gente em toda a volta e ninguém teria o direito de se aproximar. Mas não conseguiriam despregar os olhos de nós...'' O pior era que a carta tinha data. Era uma carta recente, escrita numa altura em que Tereza vivia com Tomas já há bastante tempo. Ralhou-lhe: ''Andaste a vasculhar nas minhas cartas!'' Sem procurar desmenti-lo, ela disse: ''Pois andei! Então porque é que não me pões na rua?'' Mas Tomas não a pôs na rua. Via-a era a enfiar as agulhas debaixo das unhas, encostada à parede do atelier de Sabina. Pegou-lhe nos dedos, fez-lhes festas, levou-os aos lábios e beijou-os como se tivessem marcas de sangue. A partir desse momento, tudo parecia conspirar contra ele. Não se passava praticamente um dia sem que lhe chegasse mais uma novidade sobre os seus amores clandestinos. Primeiro, negava tudo. Quando as provas eram evidentes demais, tentava demonstrar que não havia contradição nenhuma entre a sua vida de polígamo e o seu amor por ela. Não era nada coerente: umas vezes, negava as infidelidades, outras, justificava-as. Um dia, estava a marcar um encontro pelo telefone com uma amiga e quando desligou pareceu-lhe ouvir um barulho esquisito na outra divisão, o barulho de dentes a bater. Tereza viera a casa por acaso e ele não dera por isso. Tinha um frasco de calmante na mão e, como estava a beber pelo gargalo e a mão lhe tremia, o vidro batia-lhe contra os dentes. Correu para ela como se fosse salvá-la de morrer afogada. O frasco de valeriana caiu, fazendo uma grande nódoa no carpete. Tereza debatia-se, queria escapar-lhe. Teve de mantê-la durante um quarto de hora numa espécie de colete-de-forças até que se acalmou. Sabia que se encontrava numa situação injustificável porque baseada numa desigualdade absoluta. Muito antes de Tereza ter descoberto a sua correspondência com Sabina, tinham ido a um cabaré com alguns amigos festejar o novo emprego de Tereza. Deixara o laboratório de fotografia porque a revista a aceitara como fotógrafa: Como Tomas não gostava de dançar, um dos seus colegas mais novos do hospital convidara Tereza. Deslizavam ambos sobre a pista e Tereza estava mais bonita do que nunca. Estupefato, via com que precisão e com que docilidade ela adivinhava uma fração de segundo antes a vontade do seu par. Tal forma de dançar parecia proclamar que a sua devoção, aquele seu ardente desejo de fazer o que lhe lia nos olhos, não estava necessariamente ligado à pessoa de Tomas e que podia perfeitamente ter respondido ao apelo de outro
Nas línguas em que a palavra compaixão não se forma com a raiz ''passio = sofrimento'' mas com o substantivo ''sentimento'', a palavra é empregue mais ou menos no mesmo sentido, mas dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou medíocre. A força secreta da sua etimologia banha a palavra de uma outra luz e dá-lhe um sentido mais lato: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com o outro não só a sua infelicidade mas sentir também todos os seus outros sentimentos: alegria, angústia, felicidade, dor. Esta compaixão (no sentido de soucit, wspolrzurie, Mitgefühl, medkänsla) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afetiva, ou seja, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo. Sonhando que estava a enfiar agulhas por baixo das unhas, Tereza traía-se a si própria porque revelava a Tomas que mexia às escondidas nas suas gavetas. Se fosse outra mulher, nunca mais lhe dirigiria palavra. Consciente disso, Tereza dissera-lhe: ''Põe-me na rua!'' Ora, ele não só não a tinha posto na rua como lhe pegara na mão e lhe beijara a ponta dos dedos, já que, nesse momento, sentia a mesma dor que ela por baixo das unhas, como se os dedos de Tereza estivessem diretamente ligados ao seu cérebro. Aquele que não possui o dom diabólico da compaixão (co-sentimento) não pode senão condenar friamente o comportamento de Tereza, porque a vida privada do outro é sagrada e não se devem abrir as gavetas onde ele guarda a sua correspondência pessoal. Mas como a compaixão se tornara o destino (ou a maldição) de Tomas, parecia-lhe que fora ele que se ajoelhara em frente da gaveta da secretária e ficara hipnotizado pelas frases escritas pela mão de Sabina. Compreendia Tereza e não só era incapaz de querer-lhe mal como o seu gesto o fazia amá-la ainda mais.
Os gestos de Tereza eram cada vez mais bruscos e incoerentes. Há já dois anos que descobrira as infidelidades de Tomas e tudo ia de mal a pior. Era um caso insolúvel. Mas como? Tomas não podia acabar de vez com as suas amizades eróticas? Não, isso seria o seu fim. Não tinha força suficiente para refrear o seu apetite por outras mulheres. E depois, parecia-lhe uma coisa supérflua. Ninguém melhor do que ele sabia que essas aventuras não punham Tereza minimamente em questão. Privar-se delas, porquê? Era uma eventualidade que lhe parecia tão absurda como renunciar a ir ao futebol. Mas ainda poderia falar-se em alegria? Mal a deixava para ir ao encontro de uma das amantes, esta tornava-se-lhe indiferente e jurava a si próprio que era a última vez. A imagem de Tereza estava sempre a bailar-lhe diante dos olhos e tinha que se embebedar imediatamente para deixar de pensar nela. Desde que a conhecia, era incapaz de ir para a cama com outras sem a ajuda do álcool! Mas o cheiro a álcool era precisamente o indício através do qual Tereza ainda descobria com mais facilidade as suas infidelidades. A armadilha fechara-se sobre Tomas: mal a deixava para ir ao encontro delas, o seu desejo desvanecia-se, mas se passava um dia sem elas punha-se logo a telefonar para marcar um encontro. Ainda era em casa de Sabina que se sentia melhor porque sabia que ela era discreta e que não havia razão para temer ser descoberto. No atelier, pairava como uma recordação a sua vida passada, a sua vida idílica de celibatário. Talvez ele não se desse conta de como mudara: tinha medo de voltar tarde para casa porque Tereza estava à espera. Uma vez, enquanto faziam amor, Sabina viu-o espreitar para o relógio e percebeu que ele se esforçava por apressar a conclusão. Em seguida, pusera-se toda nua a passear negligentemente pelo atelier e fora-se postar diante de um cavalete onde estava um quadro inacabado, enquanto espiava Tomas a enfiar a roupa a toda a velocidade. Em breve este se encontrava outra vez vestido, mas com um pé descalço. Olhou em redor de si e depois pôs-se de gatas debaixo da mesa com se estivesse à procura de qualquer coisa. Sabina disse: "Quando olho para ti, só sinto que estás a ficar cada vez mais parecido com o eterno tema dos meus quadros: o encontro de dois mundos. Uma dupla exposição. Por detrás da silhueta de Tomas, o libertino, transparece o incrível rosto do apaixonado romântico. Ou então, é precisamente o contrário: através da silhueta do Tristão que não pensa senão na sua Tereza, apercebe-se o belo universo traído do libertino.'' Tomas pusera-se de pé e não prestava grande atenção ao que Sabina dizia. "De que é que andas à procura?; perguntou ela.
Tomas sabia perfeitamente que aquilo era uma vingança. Sabina escondera-lhe a meia para o castigar de ter olhado para o relógio enquanto estavam a fazer amor. Mas com o frio que estava, não podia senão submeter-se a ela. Entrou em casa com uma meia numa perna e, na outra, uma meia branca de mulher enrolada no tornozelo. Estava numa situação de onde não havia saída: aos olhos das amantes, marcado pelo selo infamante do seu amor por Tereza; aos olhos de Tereza, pelos estigmas das suas aventuras com as amantes.
Para lhe minorar o sofrimento, casou-se com ela (puderam finalmente desistir do estúdio alugado onde Tereza já não vivia há muito) e arranjou-lhe um cachorrinho. Era filho de uma cadela são-bernardo de um colega de Tomas e do pastor-alemão do vizinho. Ninguém queria os rafeiros e o seu colega sentia as entranhas revolverem-se-lhe só de pensar em mata -los. Tomas tinha de escolher um cachorro e sabia que os que não escolhesse seriam abatidos. Estava na mesma situação que um presidente da República quando há quatro condenados à morte e só pode agraciar um. Acabou por escolher um cachorro, uma fêmea, que parecia ter o corpo do pastor-alemão e cuja cabeça fazia lembrar a do são-bernardo. Levou-o a Tereza. Esta pegou nele ao colo, apertou-o contra os seios e o bicho fez-lhe imediatamente xixi na blusa. Depois, tiveram de batizá-lo. Tomas queria que, pelo nome, se ficasse logo a saber que o cão era de Tereza e lembrou-se do livro que ela trazia debaixo do braço no dia em que viera a Praga sem prevenir. Propôs que lhe chamassem Tolstoi. ''Não lhe podemos chamar Tolstoi, replicou Tereza, porque é uma menina. Vamos mas é chamar-lhe Ana Karenina.
Se Tomas não hesitara sequer um minuto em recusar a oferta do médico suíço fora por causa de Tereza. Pensava que ela não devia querer ir-se embora. Aliás, Tereza passou os sete primeiros dias da ocupação numa espécie de transe que quase se assemelhava à felicidade. Andava sempre na rua com a máquina fotográfica e distribuía os seus negativos por jornalistas estrangeiros que se disputavam entre si para os obter. Num dia em que fora um pouco longe demais e fotografara de perto um oficial a apontar a pistola às pessoas que iam numa manifestação, apreenderam-lhe a máquina e obrigaram-na a passar a noite no quartel-general russo. Ameaçaram-na com o pelotão de fuzilamento, mas, assim que se viu em liberdade, voltou a ir para a rua tirar fotografias. Assim, qual não foi a surpresa de Tomas quando, no décimo dia da ocupação, ela lhe perguntou: ''Ora diz-me, no fundo, por que é que tu não queres ir para a Suíça?
parecesse incrível, Tereza fora-se mesmo embora para não voltar.
Pensar que não podia fazer absolutamente nada mergulhou-o num estado de grande estupor, mas, ao mesmo tempo, era uma idéia que o tranqüilizava. Não havia ninguém que o obrigasse a tomar uma decisão. Não era obrigado a contemplar a parede do prédio em frente e pensar se queria viver com Tereza ou não. Quem decidira fora ela. Foi almoçar fora. Sentia-se triste, mas, durante a refeição, o desespero inicial pareceu atenuar-se, como se tivesse perdido o vigor e dele não restasse senão a melancolia. Pensava nos anos que passara com Tereza e parecia-lhe que aquela história não podia ter acabado melhor. Se fosse inventada, não podia acabar senão assim: Um belo dia, de surpresa, Tereza viera para casa dele. Um belo dia, também de surpresa, partira. Chegara com uma mala pesadíssima. Com uma mala pesadíssima partira. Pagou a conta, saiu do restaurante e foi dar uma volta, repleto de uma melancolia cada vez mais radiosa. Atrás de si, sete anos de vida em comum com Tereza para agora constatar que esses anos eram mais belos na memória do que no instante em que os vivera... Belo, o amor deles certamente que o era - mas também tão penoso: sempre a esconder qualquer coisa, sempre a dissimular, a fingir, a reparar, a levantar-lhe o moral, a consolá-la, continuamente a provar-lhe que a amava, a ouvi-la queixar-se dos seus ciúmes, do seu sofrimento, dos seus sonhos, a sentir-se culpado, a justificar-se, a desculpar-se. Agora, o esforço desaparecera e não ficara senão a beleza. A noite de sábado estava a começar. Era a primeira vez que passeava sozinho a pé em Zurique. Pôs-se a respirar fundo o perfume da liberdade. A aventura espreitava em cada esquina. O futuro tornava a estar envolto em mistério. Voltava à sua vida de celibatário, àquela vida a que, noutros tempos, sabia estar destinado porque era a única em que podia ser tal e qual como era. Vivera sete anos acorrentado a Tereza que seguira constantemente com os olhos o seu mais ínfimo movimento. Era como arrastar as grilhetas que ela lhe pusera nos tornozelos. Agora, de súbito, o seu andar tornava-se mais ligeiro. Quase voava. Estava no espaço mágico de Parmênides: saboreava a doce leveza do ser. (Sentia alguma vontade de telefonar para casa de Sabina, em Genebra, ou de entrar em contato com uma das mulheres que conhecera em Zurique nos últimos meses? Não, nenhuma. Bem sabia que a partir do momento em que estivesse com outra, a memória de Tereza lhe faria sentir uma dor insuportável).
O seu estranho e melancólico encantamento durou até domingo à noite. Na segunda-feira tudo mudou. Tereza irrompeu no seu pensamento: sentia agora o que ela sentira enquanto lhe escrevia a carta de despedida; sentia como as mãos lhe tremiam; via-a, arrastando com uma mão aquela mala pesadíssima e com a trela de Karenine na outra; imaginava-a a meter a chave na fechadura da casa de Praga e sentia no fundo de si próprio a desolação que lhe varrera o rosto quando abrira a porta. Durante aqueles dois belos dias de melancolia, a sua compaixão (essa maldição da telepatia sentimental) estivera a descansar. A compaixão dormira como o mineiro dorme ao domingo, depois de uma árdua semana de trabalho, para poder voltar ao fundo na segunda-feira. Estava a observar um doente e quem via era Tereza. Ordenava a si próprio: Não penses nisso! Não penses nisso! Dizia para si mesmo: Estou doente de compaixão e por isso é bom que ela se tenha ido embora e que eu nunca mais a veja. Não é dela que tenho de me libertar, mas da minha compaixão, desta doença que dantes eu não sabia que existia e que ela me inoculou! No sábado e no domingo sentira a doce leveza do ser vir-lhe do fundo do futuro. Segunda-feira sentiu-se esmagado por um peso que até aí nunca tinha conhecido. As imensas toneladas de ferro dos tanques russos não eram nada comparadas com esse peso. Não há nada mais pesado do que a compaixão. Mesmo a nossa própria dor não é tão pesada como a dor co-sentida com outro, por outro, no lugar de outro, multiplicada pela imaginação, prolongada em centenas de ecos. Admoestava-se a si próprio, intimava-se a não ceder à compaixão e a compaixão ouvia-o de cabeça baixa como um culpado. A compaixão sabia que estava a abusar dos seus direitos mas continuava discretamente a obstinar-se, o que fez com que, cinco dias depois da partida de Tereza, Tomas anunciasse ao diretor da clínica (precisamente aquele que lhe telefonava todos os dias para Praga depois da invasão russa) que tinha de voltar imediatamente para o seu país. Sentia-se envergonhado. Sabia que o diretor acharia a sua conduta irresponsável e imperdoável. Teve mil e uma vezes a tentação de contar-lhe tudo e de falar-lhe de Tereza e da carta que lhe deixara em cima da mesa. Mas acabou por não fazer nada disso. O médico não poderia encarar o procedimento de Tereza senão como um odioso comportamento de mulher histérica. E Tomas não queria que ninguém pensasse mal de Tereza.
O diretor ficou seriamente magoado. Encolhendo os ombros, Tomas disse: ''Es muss sein. Es muss sein.'' Era uma alusão. O último andamento do último quarteto de Beethoven é composto a partir dos dois temas seguintes:
Muss es sein? (Tem de ser?)
Es muss sein! Es muss sein! (Tem de ser!) (Tem de ser!)
Para tornar o sentido destas palavras perfeitamente claro, Beethoven inscreveu no início do último andamento: ''Der schwer gefasste Entschluss'' - a decisão gravemente pesada. Para Tomas, a alusão a Beethoven era, na realidade, uma forma de referir-se mais uma vez a Tereza, porque fora ela que o obrigara a comprar os discos com os quartetos e as sonatas de Beethoven. Era uma alusão mais oportuna do que podia pensar porque o diretor da clínica era melómano. Com um sorriso sereno, disse suavemente, imitando com a voz a melodia de Beethoven: Muss essein? Tem de ser?" Tomas repetiu uma vez mais: ''Sim, tem de ser! Ja, es muss sein!''.
Ao contrário de Parmênides, parece que Beethoven considerava o peso como algo de positivo. Der schwer gefasste Entschluss, a decisão gravemente pesada está associada à voz do destino (Es muss sein!); o peso, a necessidade e o valor são três noções íntima e profundamente ligadas: só é grave o que é necessário, só tem valor o que pesa. A origem desta convicção situa-se na música de Beethoven e, sendo embora possível (senão provável) que seja mais da responsabilidade dos seus exegetas do que do próprio compositor, hoje quase todos nós a partilhamos: para nós, a grandeza de um homem reside no fato de carregar com o seu destino como Atlas carregava aos ombros a abóbada dos céus. O herói beethoveniano é um halterofilista de pesos metafísicos. Tomas guiava em direção à fronteira suíça e eu imagino um Beethoven carrancudo e com a cabeleira em desordem a dirigir em pessoa a fanfarra dos bombeiros e a tocar, em homenagem ao seu adeus à emigração, uma marcha intitulada Es muss sein! Mais tarde, já depois de ter atravessado a fronteira checa, deparou-se-lhe uma coluna de tanques russos. Parou o carro num cruzamento e esperou meia hora até eles acabarem de passar. Um soldado russo, com um ar terrível e de uniforme preto, postara-se no meio do cruzamento a dirigir o trânsito como se as estradas da Boêmia fossem todas propriedade sua. ''Es muss sein! Tem de ser!'', continuava Tomas a repetir de si para si, mas, dentro em pouco, começou a ter dúvidas: tinha mesmo de ser? Tinha. Seria insuportável ficar em Zurique e imaginar Tereza sozinha em Praga. Mas durante quanto tempo mais é que a compaixão havia de atormentá-lo? Toda a vida? Um ano? Um mês? Ou só uma semana? Como sabê-lo? Como verificá-lo? Numa aula de trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer uma experiência para confirmar uma dada hipótese científica. Mas o homem, porque só tem uma vida, não tem qualquer possibilidade de verificar as hipóteses através da experiência e nunca poderá saber se teve ou não razão em obedecer aos seus sentimentos. Estava neste ponto das suas meditações quando abriu a porta do apartamento. Karenine saltou-lhe para a cara, o que facilitou o reencontro. A vontade de atirar-se para os braços de Tereza (que ainda sentia quando se metera no automóvel em Zurique) tinha pura e simplesmente desaparecido. Estava à sua frente no meio de uma planície nevada e ambos tremiam de frio.
Desde o primeiro dia de ocupação que os aviões russos se cruzavam durante toda a noite no céu de Praga. Tomas desabituara-se do barulho e não conseguia adormecer. Virava-se na cama, ao lado de Tereza já a dormir, pensando no que ela lhe dissera há vários anos no meio de uma conversa banal. Estavam a falar de Z., um amigo de Tomas, e Tereza declarara: ''Se não te tivesse encontrado, tinha-me apaixonado por ele.'' Já na altura, essas palavras o tinham feito mergulhar numa estranha melancolia. Com efeito, compreendera de súbito que Tereza se apaixonara por ele e não por Z. perfeitamente por acaso. Que, para lá do seu amor por Tomas, já realizado, havia no reino dos possíveis um número infinito de amores não realizados por outros homens.
ser apanhada pela mãe, os olhares que ia lançando traziam a marca de um vício secreto. Não era a vaidade que a atraía para o espelho, mas o espanto de lá descobrir o seu eu. Esquecia-se de que o que tinha diante dos olhos era o quadro de comando dos mecanismos físicos. Parecia-lhe que o que se lhe revelava sob os traços do rosto era a sua própria alma. Esquecia-se de que o nariz é a extremidade do tubo que leva ar aos pulmões. O que nele via era a fiel expressão da sua natureza. Contemplava-se longamente ao espelho e, por vezes, reconhecia, contrariada, os traços da mãe no seu próprio rosto. Quando isso acontecia, concentrava-se melhor e fazia um grande esforço de vontade para se abstrair, para fazer tábua rasa da fisionomia da mãe e só deixar subsistir o que era verdadeiramente ela própria. Quando conseguia, era um momento inebriante: a alma voltava a subir à superfície do corpo como a tripulação a sair do ventre de um navio, a invadir a ponte, a levantar os braços para os céus e a cantar.
Tereza não só se parecia fisicamente com a mãe como, por vezes, chego mesmo a ter a impressão de que a sua vida não foi senão o prolongamento da vida da mãe, um pouco como a trajetória de uma bola de bilhar é o prolongamento do gesto executado pelo braço de um jogador. Onde e quando nascera esse gesto que viria mais tarde a transformar-se na vida de Tereza? Sem dúvida que no instante em que a mãe ouvira pela primeira vez o pai, um comerciante de Praga, elogiar a sua beleza. A mãe tinha três ou quatro anos e o pai dissera-lhe que só parecia uma madona de Rafael. Tinha apenas quatro anos, mas fixara bem aquelas palavras. Mais tarde, quando andava no colégio, em vez de ouvir o professor, entretinha-se a pensar com que pintura é que se pareceria agora. Quando se tornou casadoira, teve nove pretendentes. Punham-se todos de joelhos à volta dela. Ela ficava no meio, como uma princesa, sem conseguir decidir-se por nenhum: o primeiro era mais bonito, o segundo mais espirituoso, o terceiro mais rico, o quarto mais desportivo, o quinto de melhores famílias, o sexto recitava-lhe versos, o sétimo viajava pelo mundo inteiro, o oitavo tocava violino e o nono era o homem mais viril de todos. Mas ajoelhavam-se todos da mesma maneira e todos ficavam com as mesmas bolhas nos joelhos. Acabou por escolher o nono, não por ser o mais viril, mas porque nos momentos em que, na cama, lhe segredava baixinho ao ouvido "tem cuidado! tem muito cuidado!'', ele fazia de propósito e não lhe ligava, de forma que tiveram de casar à pressa: não encontrara a tempo um médico que lhe fizesse um aborto. Assim nascera Tereza. A infindável família afluíra de todos os cantos do país, debruçara-se sobre o berço e ceceara. A mãe de Tereza não ceceava. Só pensava nos outros oito pretendentes e achava-os a todos melhores do que o nono. Tal como a filha, a mãe de Tereza também gostava de se mirar ao espelho. Um belo dia, constatou que tinha rugas à volta dos olhos e, pensou que o seu casamento fora um erro. Encontrou um homem nada viril, com várias falcatruas e dois divórcios no ativo. A mãe de Tereza detestava amantes com joelhos cheios de bolhas. Queria era ser ela a ajoelhar-se. Caiu de joelhos aos pés do escroque e deixou o marido e a filha. O homem mais viril de todos tornou-se no homem mais triste de todos. Tão triste que tudo passou a ser-lhe indiferente. Dizia alto e bom som e em qualquer lado tudo o que pensava e a polícia comunista, indignada com as suas reflexões pouco ortodoxas, intimou-o, condenou-o e enfiou-o na cadeia. Tereza, expulsa do apartamento selado, foi viver com a mãe. Ao fim de algum tempo, o homem mais triste de todos morreu na prisão e a mãe, acompanhada por Tereza, foi instalar-se com o escroque numa pequena cidade do sopé de uma montanha. O padrasto era empregado de escritório, a mãe, empregada de balcão. Teve mais três filhos. Depois, um belo dia, quando uma vez mais se mirava ao espelho, percebeu que tinha envelhecido e se tornara feia.
Ao constatar que tinha perdido tudo, pôs-se à procura de um culpado. Culpados eram todos. Culpado era o primeiro marido, viril e mal-amado, que lhe desobedecera quando ela lhe sussurrava ao ouvido para ter cuidado. Culpado era o segundo marido, pouco viril e bem-amado, que a arrastara para fora de Praga, para uma cidadezinha provinciana onde andava atrás de tudo quanto era saia, não lhe deixando a ela nem aos seus ciúmes um minuto de sossego. Sentia-se desarmada perante os seus dois maridos. O único ser humano que lhe pertencia e não podia escapar-lhe, o refém que podia pagar pelos outros, era Tereza. Aliás, talvez Tereza fosse mesmo responsável pelo destino da mãe. Tereza: essa absurda união de um espermatozóide do homem mais viril de todos com um óvulo da mulher mais bonita de todas. Nesse segundo fatídico chamado Tereza, a mãe começara a maratona da sua vida em ruínas. Explicava e tornava a explicar a Tereza que ser mãe é sacrificar tudo. Eram palavras convincentes porque exprimiam a experiência de uma mulher que perdera tudo por causa da filha. Tereza ouvia-a e ia-se convencendo que o valor mais alto da vida é a maternidade e que a maternidade é um grande sacrifício. Se ser mãe é o Sacrifício por excelência, o destino de uma filha é a Culpa que nada nem ninguém poderá resgatar nunca.
Tereza desconhecia, evidentemente, o episódio da noite em que a mãe dissera ao ouvido do homem mais viril de todos para ter cuidado. Sentia-se culpada, mas de uma culpabilidade indefinível como o pecado original. Fazia tudo para expiá-la. Como a mãe a tirara do colégio, desde os quinze anos que era criada e lhe dava tudo quanto ganhava. Estava disposta a tudo para merecer o seu amor. Tomava conta da casa, tratava dos irmãos e das irmãs, passava os domingos a esfregar e a lavar. Era pena, porque no liceu era a melhor aluna da turma. Queria elevar-se, mas onde, naquela cidadezinha? Enquanto lavava a roupa tinha sempre um livro aberto ao lado da banheira. Quando virava as páginas, o livro ficava todo cheio de gotas de água. Em casa não havia pudor de espécie nenhuma. A mãe passeava-se por todo o apartamento em roupa interior, às vezes sem soutien e até, outras vezes, no Verão, completamente nua. O padrasto não se passeava nu, mas esperava sempre que Tereza estivesse na banheira para ir à casa de banho. Por isso, um dia, fechou-sé à chave, mas a mãe fez-lhe logo uma cena: ''Quem é que tu pensas que és? Quem é que te julgas? Olha que ele não te come, essa tua beleza!'' (Não pode querer-se situação mais clara para mostrar que o ódio que a mãe tinha à filha era mais forte do que os ciúmes que o marido lhe inspirava. A culpa da filha era imensa, tão imensa que as próprias infidelidades do marido estavam lá contidas. Que o marido trouxesse Tereza debaixo de olho, ainda era admissível, mas o que não podia permitir era que a filha quisesse emancipar-se e ousasse reivindicar alguns direitos, nem que fosse o de fechar-se à chave na casa de banho!) Num certo dia de Inverno, a mãe pôs-se a passear nua numa sala que tinha a luz acesa. Tereza apressou-se a correr o estore para que os vizinhos da frente não vissem a mãe toda nua. Esta desatou a rir nas suas costas. No dia seguinte, a mãe teve visitas. Uma vizinha, uma colega da loja, uma professora primária do bairro e mais duas ou três mulheres que se encontravam regularmente. Tereza veio passar um bocadinho com elas, acompanhada por um rapaz de dezesseis anos, filho de uma das senhoras. A mãe aproveitou imediatamente para contar como Tereza quisera proteger o seu pudor. Pôs-se a rir e todas as mulheres a imitaram. Depois, observou: ''A Tereza nunca mais se convence que o corpo humano é uma coisa que se mija e se peida!'' Tereza ficou coradíssima, mas a mãe continuou: ''Sim, que mal é que há nisso?...'' Em seguida, respondendo ela própria à pergunta, deu dois ou três peidos bem sonoros. As mulheres desataram todas a rir.
A mãe assoa-se ruidosamente, descreve pormenorizadamente a sua vida sexual, exibe a dentadura postiça. Solta-a com a língua com uma agilidade surpreendente, deixa cair a parte de cima sobre os dentes de baixo e ela abre-se sozinha num largo sorriso; fica, de repente, com uma cara tão arrepiante que as pessoas têm um calafrio. Não é senão uma maneira de renegar brutalmente a sua juventude e a sua beleza. No tempo em que os nove pretendentes se ajoelhavam à volta dela, era extremamente ciosa da sua nudez. O preço do seu corpo era proporcional ao pudor que tinha dele. Se agora é impudica, é-o radicalmente; com o seu despudor, passa um risco solene por cima da vida e grita bem alto que a juventude e a beleza, que tanto sobrestimou, não valem realmente nada. Tereza parece-me ser o prolongamento desse gesto, desse gesto da mãe a expulsar para bem longe um passado de mulher jovem e bela. (E não é de admirar que Tereza também tenha modos nervosos e que aos seus gestos falte a graça da lentidão. Esse grande gesto da mãe, autodestruidor e violento, é ela, é a própria Tereza.)
A mãe quer que lhe façam justiça e que o culpado seja castigado. Insiste para que a filha fique com ela no mundo impudico onde a beleza e a juventude não têm sentido, onde o universo não passa de um gigantesco campo de concentração de corpos idênticos com uma alma invisível. Podemos agora perceber melhor o sentido do vício secreto de Tereza, dos seus longos e freqüentes momentos em frente ao espelho. Era um combate contra a mãe. Era o desejo de não ser um corpo como os outros corpos e de ver subir à superfície do rosto a tripulação da alma vinda do ventre do navio. E isso não era fácil porque a alma, triste, receosa, amedrontada, escondia-se bem lá no fundo das suas vísceras e tinha vergonha de se mostrar. Também foi assim no dia em que conheceu Tomas. Esgueirava-se como podia por entre os bêbados do restaurante, com o corpo vergado pelo peso das canecas de cerveja que levava num tabuleiro e tinha a alma na boca do estômago ou no pâncreas. Foi nessa altura que Tomas chamou por ela. Era um acontecimento importante porque quem estava a chamar por ela não conhecia nem a mãe nem os bêbados, que todos os dias a martirizavam
nervosa do restaurante. Em frente, no meio daquela cidadezinha suja, havia um largo ajardinado, triste e ralo, que sempre fora uma ilha de beleza para ela: era um relvado com quatro álamos, bancos, um chorão e forsítias. O desconhecido estava sentado num banco amarelo de onde se via a entrada do restaurante. Era precisamente o banco onde estivera sentada na véspera com um livro ao colo! Compreendeu então (os pássaros do acaso reuniam-se-lhe nos ombros) que o desconhecido lhe estava predestinado. Ele chamou-a e convidou-a a sentar-se ao seu lado (Tereza sentiu a tripulação da alma a lançar-se para a ponte do corpo). Pouco depois, acompanhou-o à estação e, no momento em que estava a despedir-se dela, estendeu-lhe um cartão-de-visita com um número de telefone: ''Se, por acaso, for um dia destes a Praga...''
Muito mais do que aquele cartão-de-visita dado à última da hora, foi o apelo dos acasos (o livro, a música de Beethoven, o número seis, o banco amarelo do largo) que encorajou Tereza a sair de casa e a mudar de vida. Foram talvez esses poucos acasos (aliás bem modestos e banais, realmente dignos de uma cidadezinha insignificante) que puseram o seu amor em movimento e se tornaram a fonte da energia onde, até ao fim, há-de ir beber. A nossa vida quotidiana está sempre a ser bombardeada pelos acasos, mais exatamente por encontros fortuitos entre as pessoas e os acontecimentos, ou seja, por aquilo a que costuma chamar-se coincidências. Há uma coincidência quando dois acontecimentos inesperados se produzem ao mesmo tempo, quando se encontram um com o outro: por exemplo, Tomas aparece no restaurante precisamente no momento em que a rádio está a dar Beethoven. Na sua imensa maioria, este tipo de coincidências passa totalmente despercebido. Se o homem do talho tivesse vindo sentar-se a uma mesa do restaurante em vez de Tomas, Tereza não teria reparado que a rádio estava a dar Beethoven (embora o encontro de Beethoven com um homem do talho também não deixe de ser uma coincidência interessante). Mas o amor a nascer aguçou-lhe o sentido da beleza e, por isso, nunca mais esquecerá essa música. Sempre que a ouvir, há-de sentir-se comovida. Tudo o que se passar à sua volta nesse instante ficará aureolado com o brilho dessa música e será belo. No começo do grosso volume que Tereza trazia debaixo do braço no dia em que veio a casa de Tomas, Ana vê pela primeira vez Vronsky em circunstâncias bastante estranhas. Estão ambos no cais de uma estação onde alguém acabara de cair para debaixo de um comboio. No fim do romance, é Ana que se atira para debaixo de um comboio. Esta composição simétrica, em que o mesmo tema aparece no princípio e no fim, pode parecer demasiado ''romanesca''. Estou disposto a admiti-lo, mas só se romanesco não significar para os que me estão a ler algo de ''inventado'', ''artificial'', ''sem semelhança com a vida''. Porque a vida humana também é assim que é composta. É composta como uma partitura musical. O ser humano, guiado pelo sentido da beleza, transpõe o acontecimento fortuito (uma música de Beethoven, uma morte numa estação) e faz dele um tema que, em seguida, inscreverá na partitura da sua vida. Como o compositor faz com os temas de uma sonata, está sempre a voltar a ele, a repeti-lo, a modificá-lo, a desenvolvê-lo, a transpô-lo. Ana poderia ter posto termo à vida de outra maneira qualquer. Mas, no momento do desespero, foi atraída pela sombria beleza do tema da estação e da morte, desse tema inesquecível associado ao nascimento do amor. Mesmo nos momentos da mais profunda desordem, é segundo as leis da beleza que, secretamente, o homem vai compondo a sua vida. Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos dos acasos (por exemplo o encontro de Vronsky, de Ana, do cais e da morte, ou o encontro de Beethoven, de Tomas, de Tereza e do copo de aguardente), mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida quotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza.
Incitada pelos pássaros dos acasos que se tinham reunido nos seus ombros, tirou uma semana de licença sem dizer nada à mãe e meteu-se no comboio. Passou grande parte da viagem a ir aos lavabos ver-se ao espelho e suplicar à alma que não abandonasse um só segundo que fosse a ponte do seu corpo nesse dia decisivo da sua vida. De repente, enquanto se olhava, encheu-se de pânico: tinha a garganta irritada. Iria adoecer logo nesse dia fatídico? Mas já não podia recuar. Telefonou-lhe da estação e, no momento em que a porta se abriu, inesperadamente, a sua barriga pôs-se a emitir uns gorgolejos horríveis. Ficou cheia de vergonha. Era como ter a mãe na barriga e ouvi-la a rir-se maldosamente para lhe estragar o encontro. Primeiro, pensou que ele ia pô-la na rua por causa desses barulhos tão despropositados, mas, em vez disso, ele tomou-a nos braços. Reconhecida pela indiferença com que encarara os seus borborismos, com os olhos velados de bruma, beijou-o ainda mais apaixonadamente. Um minuto depois, estavam a fazer amor. E enquanto fazia amor, Tereza gritava. Já tinha febre. Estava com gripe. Tinha a extremidade do tubo de passagem do ar para
os pulmões encaroada e tapada. Tempos depois, voltou com uma mala pesadíssima onde amontoara tudo o que possuía, resolvida a nunca mais regressar à sua cidadezinha provinciana. Tomas convidou-a a ir no dia seguinte à noite a casa dele. Dormiu numa pensão barata. De manhã, depositou a pesadíssima mala na estação e passou o dia inteiro pelas ruas de Praga com Ana Karenina debaixo do braço. À noite, tocou à porta e ele veio abrir; o livro, não o largava. Como se fosse o seu bilhete para entrar no universo de Tomas. Sabia que o único passaporte que tinha era essa miserável senha e isso dava-lhe vontade de chorar. Para evitar chorar, mostrou-se volúvel, pôs-se a falar alto e a rir. Mas, como da outra vez, mal passou o limiar da porta, Tomas tomou-a nos braços e foram fazer amor. Deslizou para dentro de um nevoeiro onde não havia nada para ver, nada para ouvir, a não ser o seu grito.
Não era o sopro de uma respiração ofegante, não era o sopro de uma respiração difícil, era mesmo um grito. Gritava tão alto que Tomas teve de afastar a cabeça da cara dela como se, perto dos ouvidos, o grito lhe furasse os tímpanos. Não era uma expressão de sensualidade. A sensualidade é a mobilização máxima dos sentidos: observa-se o outro intensamente e escutam-se todos os seus ruídos, mesmo os mais imperceptíveis. O grito de Tereza, pelo contrário, era para anestesiar os sentidos, para impedi-los de ver e de ouvir. O que gritava nela era o idealismo ingênuo do seu amor que pretendia ser a abolição de todas as contradições, a abolição da dualidade do corpo e da alma e talvez mesmo a abolição do tempo. Tinha os olhos fechados? Não, mas os seus olhos não olhavam para lado nenhum, estavam pregados no vazio do teto e, por breves momentos, a sua cabeça virou-se convulsivamente de um lado para o outro. Quando o grito se acalmou, adormeceu junto a Tomas, agarrando-lhe na mão durante toda a noite. Já aos oito anos adormecia com as mãos uma na outra, imaginando que se agarrava ao homem que amava, ao homem da sua vida. Portanto, é perfeitamente compreensível que segure tão afincadamente a mão de Tomas sempre que está a dormir: foi para isso que se preparou, foi para isso que se treinou desde a infância.
Uma rapariga que, em vez de ''se educar'', é obrigada a servir cerveja a bêbados e a passar os domingos a lavar a roupa suja dos irmãos e das irmãs, acumula dentro de si uma imensa reserva de vitalidade, inconcebível para os jovens que andam na faculdade e bocejam com um livro aberto à frente. Tereza lera mais do que eles, sabia mais da vida, mas nunca se aperceberia disso. O que distingue as pessoas que estudaram dos autodidatas não é o seu nível de conhecimento mas o grau de vitalidade e de confiança que têm em si próprios. O fervor com que Tereza, uma vez em Praga, se lançou na vida, era ao mesmo tempo voraz e frágil. Parecia ter medo que alguém lhe dissesse um dia: 0 teu lugar não é aqui! Volta para donde vieste! Toda a sua fome de viver estava suspensa de um fio: a voz de Tomas, que fizera subir às alturas a alma timidamente escondida nas vísceras de Tereza. Arranjou um lugar num laboratório de fotografia de uma revista, mas não podia contentar-se com isso. Queria era ser fotógrafa. Sabina, uma amiga de Tomas, emprestou-lhe algumas monografias de fotógrafos célebres, encontrou-se com ela num café e, com os livros abertos à frente, explicou-lhe porque é que aquelas fotografias eram originais. Tereza ouvia-a em silêncio e com uma atenção que só muito raramente um professor consegue ver na cara dos alunos. Graças a Sabina, Tereza apercebeu-se do parentesco existente entre a fotografia e a pintura e passou a obrigar Tomas a acompanhá-la a todas as exposições. Em breve conseguiu publicar fotografias suas na revista e deixou o laboratório para se tornar fotógrafa profissional. Nessa noite, foram a um cabaré festejar com alguns amigos a promoção de Tereza; dançaram. Tomas foi ficando com um ar cada vez mais carrancudo e, como Tereza insistisse para lhe dizer o que tinha, quando chegaram a casa, confessou-lhe que ficara com ciúmes por tê-la visto a dançar com o colega. Fiz-te mesmo ter ciúmes de mim?" Repetiu esta frase uma boa dúzia de vezes, como se Tomas lhe tivesse anunciado que tinha ganho o Prêmio Nobel e se recusasse a acreditar nisso. Agarrou-o pela cintura e pôs-se a dançar com ele no meio do quarto. Era muito diferente da dança mundana de há pouco, no bar. Era uma espécie de dança aldeã, era uma série de pulos extravagantes. Levantava as pernas muito alto, dava saltos enormes e desajeitados, arrastando-o atrás dla para os quatro cantos do quarto. Mas, ai! Dentro de pouco tempo, quem tinha ciúmes era ela! E os seus ciúmes não foram o Prêmio Nobel para Tomas, mas um fardo de que só se libertaria um ou dois anos antes de morrer.
Desfilava nua à volta da piscina no meio de uma multidão de outras mulheres, Tomas estava lá em cima, de
O cortejo de mulheres nuas em torno da piscina, os cadáveres no carro funerário a manifestarem o seu contentamento por Tereza também estar morta, são o por baixo que a apavora, de onde já fugiu uma vez, mas que também a atrai misteriosamente. As suas vertigens: ouvir um suave (e quase alegre) apelo que a incita a renunciar ao destino e à alma. É o apelo à solidariedade das desalmadas. Nos momentos de desespero, tem vontade de lhe responder e de voltar para a mãe. Tem vontade de fazer retirar da ponte do seu corpo a tripulação da alma; de descer e de se sentar com as amigas da mãe a rir quando uma delas se peida ruidosamente; de desfilar nua com elas em torno da piscina e de cantar.
É certo que, antes de deixar a família, Tereza já estava em guerra com a mãe, mas não nos esqueçamos que, ao mesmo tempo, tinha um amor bem infeliz por ela. Estava disposta a fazer tudo pela mãe, desde que ela lho pedisse com um tom de ternura. Foi por nunca ter ouvido esse tom que teve forças para se ir embora. Quando a mãe percebeu que a sua agressividade tinha perdido toda e qualquer influência sobre Tereza, passou a escrever-lhe cartas lacrimejantes para Praga. Queixava-se do marido, do patrão, da saúde, dos filhos e dizia que Tereza era o único ser que possuía à face da terra. Tereza julgou estar finalmente a ouvir a voz do amor materno de que, durante vinte anos, sentira saudades, e teve vontade de voltar. Tanto mais porque se sentia fraca. As infidelidades de Tomas tinham-lhe revelado bruscamente a sua impotência e desse sentimento de impotência nasciam as vertigens, um imenso desejo de cair. A mãe telefonou-lhe. Disse-lhe que tinha um cancro. Que só lhe restavam alguns meses de vida. Ao ouvir isto, o desespero em que ficara com as infidelidades de Tomas transformou-se em revolta. Censurava-se por ter traído a mãe com um homem que não gostava dela. Estava pronta a esquecer o que a mãe lhe fizera. Agora já podia compreendê-la. Estavam ambas atoladas na mesma miséria. A mãe amava o marido como Tereza amava Tomas, e as infidelidades do padrasto torturavam a mãe exatamente como as de Tomas atormentavam Tereza. A mãe só tinha sido má para ela por ser muito infeliz. Falou a Tomas da doença da mãe e anunciou-lhe que ia tirar uma semana de licença para poder ir vê-la. Disse-o com um certo tom de desafio na voz. Adivinhando que deviam ser as vertigens que estavam a atraí-la para a mãe, Tomas desaconselhou a viagem a Tereza. Telefonou para o posto clínico da cidadezinha. Como na Boêmia os dossiês dos diagnósticos de cancro são extremamente minuciosos, facilmente pôde verificar que a mãe de Tereza não tinha o mínimo sintoma de cancro e, até, que há mais de um ano não ia ao médico. Tereza obedeceu-lhe e não foi ver a mãe. Mas, nesse mesmo dia, deu uma queda na rua; passou a ter um andar hesitante; caía quase todos os dias, tropeçava nas coisas ou, na melhor das hipóteses, deixava cair os objetos que tinha na mão. Sentia um desejo imperioso de cair. Vivia numa vertigem contínua. Quem cai, quer dizer: Levanta-me! Com toda a paciência, Tomas levantava-a.
Queria fazer amor contigo no meu atelier como se fosse o palco de um teatro. Haveria gente em toda a volta e ninguém teria o direito de se aproximar, mas não conseguiriam despregar os olhos de nós... À medida que o tempo ia passando, a imagem perdia a crueldade inicial e começava a excitá-la. Várias vezes evocou a situação ao ouvido de Tomas enquanto faziam amor. Decidiu que havia uma maneira de se livrar da condenação que lia nas suas infidelidades: era levá-la com ele! Era levá-la a casa das amantes! Talvez assim, através desse desvio, o seu corpo voltasse a ser único e primeiro entre todos. O seu corpo seria o alter ego de Tomas, o seu ajudante e assistente. Enlaçados, Tereza sussurra-lhe ao ouvido: "Despia-tas, lavava-tas na banheira e levava-tas... Queria que se transformassem os dois em hermafroditas e que os corpos das outras mulheres se tornassem no seu brinquedo comum.
Servir-lhe de alter ego na sua poligamia. Tomas não queria entendê-lo, mas Tereza não conseguia deixar de pensar nisso e tentava aproximar-se de Sabina. Disse-lhe que queria fotografá-la. Sabina convidou-a a ir ao atelier. Tereza acabou finalmente por ver com os seus próprios olhos aquele divisão imensa, com o enorme divã quadrado ao meio, armado como um estrado. Que vergonha nunca teres cá vindo!, disse Sabina, enquanto lhe mostrava os quadros arrumados de encontro à parede. Chegou mesmo a ir buscar uma tela muito antiga, pintada no seu tempo de estudante. Era uma pintura de altos-fornos em construção. Tinha-a feito numa época em que, na escola de Belas-Artes, se exigia o
realismo mais rigoroso (porque a arte não realista era então considerada como uma tentativa de subversão do socialismo) e Sabina, que gostava de levar as apostas até ao fim, esforçava-se por ser ainda mais rigorosa do que os professores. Nessa altura, pintava de maneira a que o traço do seu pincel fosse perfeitamente imperceptível e os seus quadros pareciam autênticas fotografias a cor. Olha, este quadro, tinha-o estragado. Caiu-lhe tinta encarnada por cima. Ao princípio, fiquei furiosa, mas, a partir de certa altura, comecei a gostar da mancha porque parecia uma fissura, como se os fornos não fossem fornos verdadeiros, mas um velho cenário rasgado onde os fornos tivessem sido pintados em rrompe l'oeil. Comecei a brincar com a greta, a aumentá-la, a imaginar o que estaria lá atrás. Foi assim que começou o meu primeiro ciclo de quadros. Chamei-lhes cenários. É evidente que não podia mostrá-los a ninguém. Expulsavam-me logo da escola. Em primeiro plano, havia sempre um mundo perfeitamente realista, mas, um pouco mais longe, corro por detrás de um cenário de teatro rasgado, aparecia uma coisa diferente, uma coisa misteriosa ou abstrata. Calou-se por um momento e, depois, acrescentou: Em primeiro plano, era a mentira inteligível. Atrás, a incompreensível verdade. Tereza ouvia-a com aquela incrível atenção que só raramente um professor consegue ver na cara de um aluno, enquanto constatava que, de fato, todos os quadros de Sabina, tanto os antigos como os de agora, falavam sempre da mesma coisa, todos eram o encontro simultâneo de dois mundos, como fotografias que tivessem sido submetidas a uma dupla exposição. Uma paisagem e, ao fundo, à transparência, um candeeiro de mesa-de-cabeceira aceso. Uma mão a rasgar por detrás uma idílica natureza-morta com maçãs, nozes e árvore de Natal iluminada. Sentiu subitamente uma grande admiração por Sabina e, como a pintora se mostrava extremamente amigável, nenhum receio ou desconfiança se juntavam à sua admiração que, dentro em pouco, se tinha transformado em simpatia. Quase se esquecia que viera para lhe tirar fotografias. Sabina teve de lho lembrar. Ao desviar o olhar dos quadros, deparou-se-lhe, no meio da sala, o divã armado como um estrado.
Havia uma mesa-de-cabeceira ao lado do divã e, em cima dela, um suporte em forma de cabeça, um expositor daqueles que os cabeleireiros usam para pôr perucas. Em casa de Sabina, a cabeça postiça não tinha uma peruca, mas um chapéu de coco. Com um sorriso, Sabina disse: Herdei este chapéu de coco do meu avô. Chapéus como aquele, pretos, redondos, rígidos, Tereza nunca tinha visto senão no cinema. Charlie Chaplin usava sempre um. Sorriu por seu turno, pegou no chapéu de coco e examinou-o demoradamente. Depois, disse: Queres ficar com ele nas fotografias? A resposta de Sabina foi uma grande gargalhada. Tereza puisou o chapéu de coco, pegou na máquina e começou a tirar fotografias. Ao fim de uma curta hora, disse: E se eu te tirasse fotografias nua?
A máquina servia a Tereza tanto de olho mecânico para observar a amante de Tomas como de véu para se esconder dela. Só depois de passado um bom momento é que Sabina se resolveu a tirar o roupão. A situação era mais complicada do que imaginara. Depois de posar alguns minutos, aproximou-se de Tereza e disse-lhe: Agora, é a minha vez! Despe-te!